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A fantasia como esforço para dar conta do trauma

Dr. Lucas Nápoli (*)

Como uma pessoa se torna neurótica? Essa foi uma das principais perguntas que Sigmund Freud procurou responder ao longo de sua elaboração teórica na Psicanálise. Inicialmente, o médico foi levada a crer, com base nos relatos de seus pacientes, que as neuroses eram causadas por experiências de abuso sexual ocorridos na infância. Freud, no entanto, sustentou essa tese por pouco tempo. Considerando a baixa probabilidade de que houvesse um número tão grande de abusadores na sociedade de sua época, o pai da Psicanálise passou a acreditar que pelo menos boa parte das supostas memórias de abusos relatadas pelos doentes seriam, na verdade, fantasias infantis.

Para sustentar essa hipótese, Freud precisaria explicar como crianças seriam capazes de imaginar cenas de sedução sexual. De fato, a sociedade europeia do fim do século XIX acreditava que as crianças não tinham desejos sexuais. Como, então, seria possível que o paciente neurótico quando criança tivesse criado em sua imaginação uma fantasia de abuso sexual?

Freud responde essa pergunta com uma de suas principais obras, os “Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade”. Na segunda parte desse livro intitulada justamente “A Sexualidade Infantil”, o autor descreve, fazendo referência a diversos outros pesquisadores, a multiplicidade de formas de prazer sexual que a criança experimenta. Nesse texto, o médico demonstra, por exemplo, que as chamadas “preliminares” do ato sexual adulto, isto é, o olhar, o toque, o beijo etc. são modalidades de satisfação sexual que já estão presentes na infância. Freud evidencia também que apego, ciúme, rivalidade, dentre outros sentimentos típicos do erotismo adulto, já estão presentes na relação da criança com seus primeiros objetos de amor, a saber: seus pais e, eventualmente, seus irmãos.

Assim, ao esclarecer que a sexualidade já está presente em nós desde a infância, Freud se vê munido das bases necessárias para sustentar sua nova teoria de que as neuroses estariam mais associadas a fantasias sexuais infantis do que necessariamente a abusos sexuais reais. Por outro lado, ao abrir as portas para a abordagem das fantasias de seus pacientes, Freud acabou sendo levado novamente da dimensão da imaginação para o campo da realidade. Com efeito, embora as narrativas dos doentes contivessem claros elementos fantasísticos, isto é, criações imaginárias derivadas do desejo e não da realidade, havia sempre por detrás delas determinadas experiências reais que pareciam estar na origem das próprias fantasias.

Todavia, não se tratava de abusos sexuais, mas de acontecimentos e episódios às vezes muito fortuitos como o encontro com uma determinada pessoa, um olhar do pai ou uma fala da mãe ou eventualmente situações de natureza mais contínua como o fato do sujeito ter sido amamentado mais tempo do que o necessário ou de ter apanhado sistematicamente do pai ou da mãe. De todo modo, são situações que realmente aconteceram e exerceram sobre a pessoa um efeito traumático, isto é, por alguma razão não puderam ser assimiladas pelo psiquismo dela. Freud observou que as fantasias sexuais infantis de seus pacientes pareciam ter sido construídas justamente em resposta a essas experiências reais, como parte de um esforço para se apropriarem subjetivamente delas. Nesse sentido, a fantasia seria um recurso defensivo para fazer do trauma uma fonte de prazer e não de dor.

É a partir dessas observações que Freud irá propor o conceito de FIXAÇÃO como um elemento crucial para a compreensão de como a neurose se desenvolve. A fixação constitui-se no apego inconsciente do sujeito à memória daquelas experiências infantis traumáticas. É como se a pessoa resistisse a esquecer aquelas situações, trazendo-as constantemente de volta ao presente ao invés de abandoná-las no passado.

Nesse sentido, a segunda teoria freudiana para explicar a gênese das neuroses poderia ser descrita esquematicamente mais ou menos da seguinte forma: (1) O sujeito se fixa a alguma experiência traumática real – (2) Graças à sexualidade infantil, o indivíduo constrói uma fantasia básica por meio da qual ele consegue “gozar” com o trauma – (3) O processo educacional força o sujeito a reprimir essa fantasia que passa a lhe parecer nojenta, detestável, absurda etc. – (4) Reprimida no Inconsciente, na adolescência e na vida adulta a fantasia passa a dominar subliminarmente a vida do sujeito, podendo chegar a um domínio quase completo pela via dos sintomas e outras manifestações patológicas (neurose).

Nota-se, portanto, que, nessa segunda teoria das neuroses, a chamada “teoria da fantasia”, Freud enfatiza a dimensão do SUJEITO na gênese do adoecimento neurótico. Na primeira teoria, que ficou conhecida como “teoria da sedução”, não há espaço para o sujeito: o adoecimento seria tão-somente o resíduo de uma experiência de abuso, ou seja, o indivíduo seria inteiramente passivo nesse processo. Com a teoria da fantasia, Freud passa a trabalhar com a ideia de que nós não vivenciamos o trauma passivamente, mas respondemos a ele, tentamos dominá-lo, buscando torná-lo uma experiência verdadeiramente nossa ao invés de apenas um episódio que aconteceu conosco.

A fantasia representa justamente o esforço para subjetivar o trauma. Podemos adoecer quando não queremos admiti-la, mas também podemos tomá-la como uma fonte de criatividade quando nos dispomos a reconhecê-la – é o que se busca numa terapia psicanalítica.


(*) Dr. Lucas Nápoli – Psicólogo/Psicanalista; Doutor em Psicologia Clínica (PUC-RJ); Mestre em Saúde Coletiva (UFRJ); Psicólogo clínico em consultório particular; Psicólogo da UFJF-GV; Professor do Curso de Psicologia da Faculdade Pitágoras GV e autor dos livros “A Doença como Manifestação da Vida” (Appris, 2013), “O que um Psicanalista Faz?” (Ebook, 2020) e “Psicanálise em Humanês: 16 Conceitos Psicanalíticos Cruciais Explicados de Maneira Fácil, Clara e Didática” (Ebook, 2020).

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