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A arte de pensar pelo avesso

Dr. Lucas Nápoli (*)

Uma das descobertas mais impressionantes feitas por Sigmund Freud foi a de que podemos expressar uma ideia por meio de uma fala que seja completamente oposta a ela. Confuso? Deixe que eu lhe explique melhor citando um exemplo. Ao dizer que ama sua mãe, uma pessoa pode estar expressando exatamente a ideia oposta, ou seja, a de que, na verdade, odeia sua genitora. É claro que isso não acontece o tempo todo. Nem sempre quando uma pessoa diz que ama, está, na verdade, dizendo o oposto. Além disso, a descoberta de Freud não se refere ao corriqueiro fenômeno da mentira. Não se trata de voluntariamente falar o oposto do que se sente. O que o pai da Psicanálise descobriu foi que inconscientemente podemos utilizar um enunciado x para mascarar uma ideia y que lhe é oposta.

Um dos exemplos mais clássicos frequentemente citado quando se trata deste assunto refere-se a uma fala de um paciente de Freud numa sessão em que ambos estavam engajados na interpretação de um sonho no qual aparecia uma mulher. Quando o psicanalista indagou quem poderia ser aquela pessoa no sonho, o paciente disse: “Não é a minha mãe”. Um olhar ingênuo sobre essa fala poderia nos levar a pensar que, ao dizer isso, o paciente estaria simplesmente excluindo sua genitora do rol das possíveis pessoas que poderiam ser a mulher de seu sonho. O olhar psicanalítico, contudo, não se restringe a uma mera descrição do que o sujeito faz, mas busca discernir suas motivações mais profundas para fazer o que faz.

Portanto, do ponto de vista psicanalítico, a pergunta que devemos fazer diante da fala do paciente de Freud é: por que ele sentiu que era necessário asseverar que não era sua mãe no sonho? Muito provavelmente porque a imagem da genitora foi a primeira ideia que lhe veio à mente diante da pergunta de Freud e o paciente não queria continuar o processo de interpretação do sonho considerando que a referida mulher pudesse ser sua mãe.

Nesse sentido, ao dizer “Não é a minha mãe”, o paciente estava, na verdade, pretendendo ocultar tanto de si mesmo quanto de seu interlocutor a ideia oposta que lhe passou pela cabeça: “Esta mulher poderia ser minha mãe”. Ao se dar conta deste mecanismo de ocultação presente tanto nesse caso quanto em inúmeros outros que atendia, Freud formulou um dos princípios fundamentais que devem ser adotados por qualquer terapeuta que deseje praticar a Psicanálise: o princípio de pensar pelo avesso.

No dia a dia tendemos a acreditar que aquilo que as pessoas dizem sobre si mesmas é meramente um reflexo daquilo que pensam ou sentem. Se uma pessoa diz, por exemplo, que amao seu trabalho, a princípio não temos motivo para acreditar que, de fato, não seja isso o que ela efetivamente sente. A Psicanálise, contudo, nos ensina a nos perguntarmos sempre sobre as intençõesconscientes e inconscientes que levam um indivíduo a dizer o que diz. E para discernirmos tais intenções, devemos prestar atenção no contexto em que a fala se dá. No caso do paciente de Freud, por exemplo, a frase “Não é a minha mãe” foi dita em resposta à pergunta do médico “Quem poderia ser essa mulher?”. O paciente poderia ter dito simplesmente “Não faço ideia”, mas preferiu deixar claro que não era sua genitora, o que revela o medo de que ela pudesse ser a mulher do sonho.

A análise do contexto no qual uma fala acontece é o que nos permite pensar pelo avesso. O que a pessoa não está dizendo ao dizer o que diz? Esta é a pergunta fundamental que todo psicanalista precisa manter em mente ao escutar um paciente. Quando uma analisante diz, por exemplo, que nunca pensou em trair seu marido sem que isso lhe tenha sido perguntado pelo terapeuta, o que podemos concluir senão que ela provavelmente já pensou inúmeras vezes em fazer isso, mas sente vergonha ou culpa em relação a tais pensamentos?Do contrário, por que motivos ela faria questão de afirmar que o adultério nunca lhe passou pela cabeça? Nesse caso, a fala serve ao propósito de evitar que o analista chegue à conclusão, com base em seu discurso anterior, de que ela cogitou ter relações extraconjugais. Ao dizer que nunca pensou nessa possibilidade, a paciente acredita que levará o analista a descartar a hipótese de que ela possa ter pensado nisso.

É por isso que o terapeuta precisa sempre pensar pelo avesso. Embora a técnica fundamental da Psicanálise seja a associação livre, isso não significa que o psicanalista acredite que a fala corresponde exatamente àquilo que de fato o paciente pensa ou sente. A associação livre, isto é, o falar espontâneo, sem censuras, é justamente a condição necessária para que esses processos de ocultação que tipicamente utilizamos em nosso discurso possam se manifestar explicitamente. A paciente que disse que nunca pensou em trair seu marido falou isso em associação livre, ao se dar conta intuitivamente que o rumo de seu discurso provavelmente levaria o analista a concluir que ela tinha desejos adúlteros.

Cabe ao analista não escutar a fala de seus pacientes como se estivesse lendo uma ata de reunião, documento que simplesmente registra fatos. Quem pratica a Psicanálise deve ouvir seus pacientes como se estivesse diante de um show de stand-up comedy, cheio de ironias e figuras de linguagem, onde frequentemente o que é dito serve frequentemente apenas para levar a plateia a rir deduzindo o que não se diz.  


(*) Dr. Lucas Nápoli – Psicólogo/Psicanalista; Doutor em Psicologia Clínica (PUC-RJ); Mestre em Saúde Coletiva (UFRJ); Psicólogoclínico em consultório particular; Psicólogo da UFJF-GV; Professor e Coordenador do Curso de Psicologia da Faculdade Pitágoras GV e autor do livro “A Doença como Manifestação da Vida” (Appris, 2013).

As opiniões emitidas nos artigos assinados são de inteira responsabilidade de seus autores por não representarem necessariamente a opinião do jornal

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