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A arte de ler e ignorar histórias

FOTO: Freepik

“Nighthawks” é a tela mais famosa do famosíssimo Edward Hopper. Você já deve ter visto uma reprodução dela por aí, em filmes, livros ou memes. Foi criada em 1942 e exibe pessoas sentadas ao balcão de um restaurante tipicamente estadunidense — o pintor é dos EUA. No quadro, é noite e o clima é de muita melancolia, vazio e bastante desolação. A beleza da obra contrastando com a absoluta ausência de otimismo revela a genialidade do artista — que ficou conhecido como “o pintor da solidão”, mas que foi muito mais do que isso.

No último dia 9, em uma charge da Folha de S. Paulo, João Montanaro reproduziu a tela icônica do pintor norte-americano para refletir sobre a treta entre o presidente Donald Trump e o bilionário Elon Musk. Na versão ácida do cartunista, o balcão tem um homem com um boné vermelho que remete ao acessório difundido pelo mandatário ianque — aquele do MAGA: Make America Great Again. Há também um membro do obsceno grupo de ódio Ku Klux Klan. O “quadro” de Montanaro tem ainda uma TV imensa na qual se transmite a cobertura do embate MUSK VS. TRUMP (assim, em caixa alta mesmo). Os personagens do balcão não aparentam estar interessados no assunto. Não estão com os olhos atentos ao aparelho. Parecem mais — ao melhor estilo Hopper — desolados devido à ruptura entre o dono da Tesla e o ocupante da Casa Branca.

Se na parte de cima do continente americano a relação entre os poderosos teve um término repentino, a última semana foi de muita demonstração de amor no Brasil — não exatamente na política. É que por aqui tivemos o Dia dos Namorados. Aí já viu, né? Coração pra todo lado. Muita vitrine rosa e vermelha nas ruas. Pétalas, sorrisos e clichês dissimulando e estimulando sentimentos. Alguns restaurantes ganham uma sexta-feira a mais no calendário de junho. Tem sido mais ou menos assim ao longo dos tempos, e tudo bem. Afinal, criar momentos e motivos faz parte do jogo que topamos jogar.

Dito isso, duas ações chamaram minha atenção na semana dos namorados. A primeira, bem debochada e divertida, foi do Burger King, que prometeu um Whopper grátis no drive-thru das lanchonetes participantes para quem adquirisse um combo BK e trouxesse uma testemunha que comprovasse que o cliente já foi corno. Que coisa, hein? A ação, além de reafirmar o tempero irreverente da marca, teve a intenção de esquentar o drive-thru da rede. O vídeo de divulgação é preciso e sagaz, com uma garota muito simpática e um texto cheio de referências ao universo dos chifrudos.

A outra ação sensacional ganhou o noticiário especializado em marketing e, de modo geral, as redes. Para homenagear os casais enamorados, o supermercado Pão de Açúcar usou frutas e verduras como motivos para mensagens fofas. Uma embalagem de chuchu trazia os seguintes dizeres: “Um chuchuzinho para o meu chuchuzinho”. “Que tal homenagear a sua metade da laranja?”, dizia um texto nada cítrico ancorado por duas laranjinhas pra lá de simpáticas. A padaria da marca se apaixonou pela brincadeira e cravou: “Que tal se declarar pro seu sonho?”. Vai aqui uma declaração: a gente amou.

A propaganda e o marketing têm essa veia meio tresloucada. Sempre tiveram. O mundo, como de costume, está um caos, com Gaza sangrando, Los Angeles em medo e tensão, espantosas estatísticas recém-divulgadas sobre a violência no Brasil… Enfim, há muitas razões para fazer cara e pose de lamento, como nas obras de Hopper. Enquanto isso, agências de publicidade e times de marketing pensam em coisas engraçadas a fim de engajar e vender. Não se tem aqui exatamente uma crítica, mas sim uma observação. Tipo, o Titanic está afundando, mas não é por isso que a gente vai deixar de tocar. Afinal, o que seria da vida — e das tragédias — sem música?

O hit “A Promessa”, sucesso nos anos 1990 com os Engenheiros do Hawaii, dizia assim em um trecho que prepara o terreno para o refrão:

“Propaganda é a arma do negócio
No nosso peito bate um alvo muito fácil
Mira a laser, miragem de consumo
Latas e litros de paz teleguiada”

Na música “Você pra Mim é Lucro”, do novíssimo álbum do mineiro FBC, tem um trecho que diz o seguinte: “Tá tudo ali, tudo ali / Veja, ouça, ajoelhe e reze pros comerciais”. Tá tudo ali, aqui e acolá, FBC. E, sim, é preciso mesmo refletir. Mas, a despeito das vicissitudes, alguma leveza se faz necessária. Apesar da Ku Klux Klan, dos horrores e da ansiedade por tantos motivos, a comunicação — mesmo em sua vertente mais superficial e mercadológica — cria suas formas de resistência. Talvez eu esteja sendo muito otimista, como quem ainda acredita na prosperidade no Oriente Médio. Mas mesmo isso é fundamental diante de uma realidade que tem as cores de Hopper, cuja tensão entre Musk e Trump é o X de uma questão que não podemos ignorar.

(*) Jornalista e publicitário | Professor na Univale e poeta sempre que possível.

Instagram: @bob.villela | Medium: bob-villela.medium.com

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