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Pecados admiráveis e paraísos fake

FOTO: Freepik
por Bob Villela (*)

“É a maçã sem Eva, é a maçã da Apple”. O irreverente e ótimo músico pernambucano Otto diverte e reflete pecados em Miss Apple e Zé Pilantra ao longo do rico repertório que construiu. Se você abandonar o texto nesta linha, dê pelo menos um play em Otto no seu tocador favorito. Se continuar, será um prazer. Todo mundo conhece a Apple. O iPhone, tão famoso quanto desejado. A maçã, o design, o status. Até agora, não temos novidades. O que muita gente não sabe — inclusive muita gente da publicidade — é que a Apple, antes de lançar o iPod e o iTunes e tocar uma revolução na maneira de escutar música, e muito antes de alterar de forma avassaladora a história dos smartphones e nossa relação com eles, foi responsável por um grande feito na trajetória da propaganda. É que ela levou ao ar aquele que até hoje é considerado por muitos o mais icônico comercial de TV de todos os tempos.

Para lançar o computador Apple Macintosh, em 1984, a agência Chiat/Day de Los Angeles criou um roteiro inspirado em…1984, obra clássica distópica de George Orwell. E para dirigir o filme, contratou o Ridley Scott, diretor lendário que àquela altura já tinha no currículo Alien, O Oitavo Passageiro e Blade Runner – O Caçador de Androides. O produto da Apple não aparece em nenhum instante. Em vez disso, uma mulher aguerrida representa, ao longo do vídeo, a luta contra a falta de liberdade, contra o monopólio da tecnologia e contra os gigantes que ditam as regras. A “vilã” implícita no enredo era a IBM, que mandava na zorra toda à época. O vídeo foi exibido no nobrérrimo intervalo comercial do Super Bowl — a final do campeonato de futebol americano — e está prestes a completar 40 anos na prateleira de cima dos clássicos.

Hoje, a maior parte da receita da Apple já não vem dos computadores. É com o iPhone, sobretudo, que ela garante seu posto de empresa mais valiosa do planeta — às vezes fica em segundo lugar, dependendo do humor dos mercados e das “projeções dos analistas”. E é por meio dos smartphones — não apenas os da Apple — que formamos uma massa ansiosa por informação, seja lá o que isso signifique hoje em dia. É policiando nosso fôlego alucinado e patrocinando “instantes felizes” que somos uma engrenagem a serviço de um sistema bastante intrincado. Se na belíssima canção Trem das Cores, Caetano Veloso observa “a seda azul do papel que envolve a maçã”, é pela luz azul das telas que a nação se envolve ou se dissolve até o caroço.

Nessa atmosfera de absurda fruição de plástico, muitos conceitos são postados no nosso sempre bem-vindo feed de inferências. No sucinto e fascinante livro Infocracia: Digitalização e a crise da democracia, o filósofo Byung-Chul Han explica que houve um tempo no qual a sociedade vivia sob o “regime disciplinar”, caracterizado por vigiar e domesticar corpos — bem ao estilo do 1984 de Orwell. Mas, segundo o autor, o que se tem hoje é um cenário no qual a sensação de liberdade (e não a restrição), o entretenimento (e não o medo) e a euforia (e não o comedimento) orientam os nossos passos num inesgotável lance de dados.

Na sequência, Byung-Chul Han conta que nosso tempo está mais para Admirável Mundo Novo, clássico do Aldous Huxley, do que para 1984. Porque na história de Huxley há uma imposição da felicidade como política de estado. Portanto, a vigilância carrancuda de Orwell cede espaço a um modelo de monitoramento mais eficaz, no qual a gente sente a autossuficiência na veia enquanto produz simulacros do nosso cotidiano. Não por acaso, em sua canção Admirável Gado Novo, Zé Ramalho observa que “a vigilância cuida do normal / Os automóveis ouvem a notícia / Os homens a publicam no jornal”. É ou não é de se admirar?

Zé Ramalho lançou aquela joia há bastante tempo. Hoje, há automóveis com a autoestima muito elevada e, não raro, equivocada. Ouvem a notícia, não checam os fatos e atropelam o bom senso. E nós, homens e mulheres, a publicamos onde quer que seja, a qualquer hora. Ao final do belíssimo comercial da Apple, a anunciante afirma que graças à chegada do Macintosh “você verá porque 1984 não será como 1984”. Do alto da nossa “liberdade” — assim mesmo, adornada com aspas — cabe perguntar aos contatos disponíveis no smartphone e nas redes sociais em que direção estamos lançando tanta energia. E trabalhar por um novo mundo que não tenha como padrão o Mundo Novo, de Huxley.


(*) Jornalista e publicitário. Coordenador dos cursos de Jornalismo e Publicidade e Propaganda da Univale. Instagram: @bob.villela
Medium: bob-villela.medium.com

As opiniões emitidas nos artigos assinados são de inteira responsabilidade de seus autores por não representarem necessariamente a opinião do jornal.

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