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‘Castelo de Babel’

FOTO: Teksomolika/ Freepik

Tenho uma teoria de que a mesma viagem pode ser vivida infinitas vezes. A primeira, claro, no presente, com o monumento que a gente sempre quis ver ali diante dos olhos, o tempero da comida diferente provada pela primeira vez, a temperatura da água no mergulho, o som da música regional ou o bate-papo com o novo melhor amigo que você acabou de conhecer, com quem provavelmente nunca mais vai topar. Da segunda em diante, passa a ser em outra dimensão, no vivo universo das memórias.

É gostoso demais ver e rever as fotos, comer o último pedaço de um docinho típico que veio lá de longe, destampar uma cerveja em casa com um abridor de imã de geladeira carregando o nome de algum lugar legal, contar mil vezes a história daquele seu perrengue chique. Ou, no meu caso, olhar para a minha parede cheia de quadrinhos e lembrar a história de cada um deles.

Minha pequena coleção começou quando comprei um quadro pintado por um artesão em algum canto do mundo. Depois, veio um desenho no pedaço de madeira, uma casinha, uma placa, um porta-copos tão estiloso que decidi mudar sua função para sempre: ele deixou a mesa para morar na parede da varanda. Agora, ela está tomada de pequenas lembranças, que se transformaram em um colorido mural de recordações.

Há uns anos, estive na simpática Cracóvia, na Polônia. A “terra do dragão” é gostosinha de se visitar, interessante, mais do que só um ponto de partida para conhecer o inferno de Auschwitz – este é um papo pesado, para outro momento. Quem já viajou comigo, sabe que vou tirar uma horinha, normalmente no último dia, para rodar as lojinhas locais em busca de conhecer, admirar e adquirir uns artesanatos.

Na Praça do Mercado da Cracóvia, que dizem ser a maior praça medieval da Europa, ficam as barraquinhas. Eu me separei do meu companheiro daquela e de tantas outras trips, o Erik, que sabia que eu demoraria naquela função e foi passear por ali. Já eu, com toda a calma do mundo, fui conhecer as opções em busca de um imã bacana, quem sabe uma nova tornozeleirinha, um quadrinho representativo.

Achei um azulejo bonitão, pintado com desenhos de uns castelos e o nome da cidade na língua local: “Kraków”. Estava decidido, seria ele – a não ser, claro, que fosse muito caro e estourasse meu limitado orçamento de mochileiro. Arte é complicado de avaliar; o espectro de preços beira o infinito. Não sou fluente em inglês, mas costumo me virar bem, ainda mais quando meu interlocutor tem boa vontade e a conversa envolve gastar meu próprio dinheiro.

Na língua da rainha, perguntei à moça da lojinha – how much – era o quadro. Ela, com o sotaque polonês bem carregado, respondeu algo que não faço a menor ideia do que foi. Não entendi absolutamente nada. Pedi para repetir, e outra vez nada. Zero. Travei. Sorri sem graça, agradeci e pulei para a barraca vizinha no instinto.

Caminhei mais um pouco pelo mercado, sem rumo. Queria mesmo aquele azulejo! Não tinha visto nada parecido em outro estande – e olha que já tinha rodado por ali. Decidi voltar lá, meio constrangido, na esperança de a vendedora não me reconhecer. Uma sensaçãozinha de vergonha desnecessária, eu sabia, ninguém é obrigado a dominar outro idioma.

Recomecei o processo, aparentando naturalidade. Olhei de novo as opções à mostra, fiz cara de interessado. Apontei para o bem que eu queria e perguntei o preço. Ela novamente respondeu a mesmíssima coisa, e eu continuei sem compreender uma única palavra. Talvez falasse em polonês mesmo. Talvez meu inglês não fosse tão “nota 7” quanto eu imaginava. – Thank you -, moça! E outra vez, saí de lá sem meu tesouro.

Que situação! Tive uma ideia: o Erik compraria o azulejo. O inglês dele era mais ou menos do mesmo nível do meu, embora meu amigo estivesse até mais destreinado naquela época, mas não custava tentar. Nós nos encontramos e eu repassei a missão. Primeiro, rimos muito. Que besteira! Depois, lá fomos nós dois, como quem não quer nada, olhar artesanatos. Ele à frente.

Pela terceira vez naquela tarde, eu estava na mesma barraquinha, agora acompanhado de um suposto outro interessado. Discretamente, apontei qual era o objetivo-alvo, e o – meu laranja – perguntou, de forma despretensiosa, o preço do quadrinho. A moça, que não devia estar entendendo nada daquele looping sem fim, coitada, respondeu, mais uma vez, a mesma frase de sempre.

Olhei para o Erik. Erik olhou para mim. Expressões de vazio, de interrogação. Agora, ao invés de um brasileiro com dificuldades de relações internacionais, éramos dois. Cabeças confidencialmente balançando de forma negativa e força para não começar a gargalhar ali mesmo. O mais absoluto zero sucesso na comunicação.

Então parti para a cartada final, no modo raiz. Abri a carteira, espalhei meus poucos euros sobre a mesinha e autorizei a comerciante a pinçar as notas necessárias para transferir a posse daquela tão almejada obra de arte para o meu nome. Alguns dinheiros para o lado de lá da mesa; negócio fechado. No fim das contas, nem era caro.

O azulejinho da Cracóvia fica exposto na galeria de arte contemporânea da minha varanda, permanentemente aberta à visitação. O desenho já está até começando a desbotar, de tanto sol que tomou. Aqueles castelinhos bonitinhos me fazem reviver dias bem divertidos no leste europeu. E me lembram que preciso praticar mais meu inglês. Ou passar a viajar com alguém poliglota, sei lá.


(*) Mineiro, jornalista e mochileiro.

Já rodou meio mundo e, quando não está vivendo histórias por aí, está contando alguma. Ou imaginando, pelo menos. É um fã da arte de contar histórias: as dele, as dos amigos e as que nem aconteceram, mas poderiam existir.

Acredita no poder que as palavras têm de fazer rir, emocionar e refletir; de arrancar sorrisos, gargalhadas e lágrimas; e de dar vida, outra vez, às melhores memórias. É autor do livro de crônicas “Isso que eu falei” e publica textos no Instagram no @isso.que.eu.falei.

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