Estava com 12 ou 13 anos de idade, saindo de uma festa no Garfo Clube, na Ilha dos Araújos, em Valadares, acompanhado dos meus pais, com minha irmã e uma prima. Acho que era um casamento, e já de madrugada, indo embora com bastante sono, vi um palco preparado na pequena quadra que fica ali na entrada do clube. A estrutura estava à espera de uma promissora banda mineira de pop-rock, que tocaria para algumas centenas de pessoas ali, no dia seguinte. Era início dos anos 1990. A promessa se cumpriu e “a cidade levemente flutuou”. A banda era o Skank.
Durante toda minha adolescência, juventude e vida adulta, o Skank esteve bastante presente. Meus pais eram muito responsáveis, por isso não estive no espetáculo que eles deram lá no Garfo Clube. Contudo certamente devo ter ido a mais de uma dezena de shows dos caras. Nunca pensei que algum deles seria o último. Era o Skank, afinal. Era muito comum estar perto de algum lugar onde eles estavam tocando. Sempre rodaram muito por cidades, festivais e estilos. Fizeram da carreira a trilha exata da quantidade e da qualidade. Certeiros e ousados, jamais foram reféns de receitas de sucesso. Ao contrário, viveram na busca do novo em seus discos, desafiando e agradando uma base de fãs que não recuava.
O Skank pendura os instrumentos após mais de 30 anos em paz com o topo. Muitos nomes do pop mundial duram mais de três décadas. Poucos chegam a esse patamar lotando ginásios e estádios, ou embalando jovens com bem menos tempo de vida do que eles têm de estrada. São mais raros ainda aqueles que, de tão fiéis ao seu legado e conscientes de seu tamanho, decidem parar. Samuel, Henrique Lelo e Haroldo podiam ficar o resto da vida desfrutando da máquina de hits que edificaram. “Que culpa a gente tem de ser feliz?”, retrucariam quando questionados sobre um eventual esgotamento criativo. Os rapazes preferiram não passar por isso e fizeram da dor da despedida uma grande turnê de celebração.
Definir o limite criativo de um projeto é um desafio imenso. Tem sempre alguém — normalmente nós mesmos — para dizer que “resta um pouco mais”. Mas será que vale a pena? Há anos o cineasta norte-americano Quentin Tarantino afirma que fará apenas dez filmes, considerando que Kill Bill Volume 1 e Volume 2 (épicos!) são apenas um. O cara tem nome para abrir cofres de estúdios e fazer, pelo menos, o triplo de títulos. E eu adoraria que isso acontecesse. Mas será? Não se trata de medo, ele quer apenas preservar o patrimônio que erigiu, evitando os riscos de um declínio provocado por convicções depreciadas pelo tempo. Há casos curiosos e muito tristes em que um trágico destino produz desfechos que criam lendas. Talvez Nirvana, Mamonas Assassinas e Amy Winehouse já tivessem vivido o auge de suas carreiras, mesmo que durassem muito mais. Infelizmente, nunca saberemos.
Em outras ocasiões a decisão pelo fim de uma etapa da carreira parece o roteiro de um filme — não exatamente do Tarantino. O Marcello Serpa, um dos maiores publicitários que o Brasil já conheceu, juntou muita fama, grana e prêmios durante algumas décadas. Absolutamente bem-sucedido, com 50 e poucos anos de idade, ele achava que sua agência, a badalada AlmapBBDO, estava se repetindo. Não bastasse isso, notava também que algumas vertentes do marketing estavam muito proeminentes, algo que ele julgava inadequado, pois tirava a sutileza e o envolvimento da comunicação. Não disposto a jogar esse jogo, saiu de cena em 2015 e foi com sua família para o Havaí. Ele ama o surfe e compreendeu que naquele momento deveria navegar em outras águas. Ousado e lúcido, entendeu que parar seria a melhor forma de não morrer na praia. Em tempo: ele já voltou de lá.
Antes que alguém pense que eu sou um imbecil, registre-se que estou ciente de que a maioria esmagadora não pode se permitir o luxo que tem o Marcello Serpa, o Skank e o Tarantino. Mas a questão não é bem essa. Se não podemos parar, é possível observar nossa produção criativa, nosso trabalho do dia a dia, seja ele qual for, e ousar ensaiar alguma reinvenção. Talvez um esgotamento, ou um limite físico ou criativo, seja o sinal de algo maior que está aguardando inauguração. Bernardinho, no vôlei, e Guardiola, no futebol, foram bons jogadores em seus desportos. Já como treinadores, estão entre os maiores da história. Ironicamente, a banda mineira fala assim em um de seus mais poderosos hits: “E quanto a mim, não é o fim / Nem há razão pra que um dia acabe”. Sim, é o fim. E sim, há razões para tal. Mas se tudo tem três lados, aguardarei a reunião do grupo — e que o cineasta norte-americano perca a conta de seus filmes.
Bob Villela
Jornalista e publicitário.
Coordenador dos cursos de Jornalismo e Publicidade e Propaganda da Univale.
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