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O lugar do Pai em Psicanálise: uma introdução

Dr. Lucas Nápoli (*)

Na teoria psicanalítica alicerçada nas contribuições de Freud e Lacan, fazemos uma diferenciação entre três pais: o pai real, o pai imaginário e o pai simbólico. O pai real é a pessoa de carne e osso que gerou a criança, ou seja, o genitor, independentemente de ter registrado seu filho. O pai simbólico, por sua vez, é uma função, ou seja, algo que tem caráter abstrato. Nós podemos ver o pai real, mas não o pai simbólico. Já o pai imaginário é uma criação da cabeça dos filhos. Trata-se de uma fantasia forjada pela criança com base na sua experiência com o pai real e o pai simbólico.

Lucas, não estou entendendo nada. Por favor, me explique melhor. Tudo bem, caro leitor. Vamos falar em Humanês e não em Psicanalês sobre esse assunto. Veja: essa diferenciação entre pai real, pai imaginário e pai simbólico foi feita pelo psicanalista francês Jacques Lacan para distinguir as três acepções com que o termo pai costumava ser utilizado no campo psicanalítico na época dele.

Por um lado, os analistas se referiam ao termo “pai” para designar a pessoa do sexo masculino que gerou filhos. De fato, do ponto de vista biológico, esse sujeito é um pai, um genitor, mas isso não significa que será ele a encarnar a função do pai simbólico necessária para a estruturação psíquica dos seus filhos. Quando não se faz a diferenciação entre pai real e pai simbólico, fica-se tentado a imaginar equivocadamente que todo pai seria capaz de exercer a função simbólica do pai ou que uma criança que cresce sem o genitor ficaria privada da função paterna.

O que é o pai simbólico? Como eu disse acima, trata-se de uma função e não de uma pessoa. Portanto, uma criança órfã pode ter um pai simbólico assim como os filhos de uma mãe solteira ou de um casal de lésbicas. A função paterna simbólica visa promover a separação entre a criança e a mãe. Mas, Lucas, essa separação não acontece naturalmente? Não. Sem a intervenção da função simbólica do pai, nem a criança nem a mãe acabariam com a ligação mutuamente satisfatória que existe entre elas. Afinal, a mãe se sente completa tendo o bebê em seus braços e a criança vivencia um paraíso tendo a atenção e o cuidado oportunos da mãe o tempo todo.

É o pai o responsável por ajudar a mãe a reconhecer que aquela sensação de completude que ela vivencia é ilusória e que ela possui outros interesses para-além do bebê. Só que o pai que faz isso não é o pai real, o genitor de carne e osso, mas, sim, o pai simbólico. O pai real pode até encarnar essa função simbólica (e frequentemente o faz), mas o agente da separação não é ele enquanto “pessoa física”.

Uai, Lucas, por que não é ele? Não é o pai real que literalmente separa a criança da mãe quando a procura para fazer sexo, por exemplo? Sim, mas a separação entre a criança e mãe necessária para o desenvolvimento psíquico saudável do sujeito não é essa separação física; trata-se de uma separação… simbólica. O que isso significa? Significa que essa separação precisa acontecer na dimensão do significado que a criança tem para a mãe e no significado que a mãe tem para ela. A mãe precisa passar a considerar a criança não mais como um símbolo daquilo que lhe tornaria completa e a criança precisa olhar para a mãe não mais como o símbolo do paraíso, da satisfação plena.

É o pai simbólico quem faz esse corte simbólico que leva a mãe a continuar buscando outros símbolos de completude tal como vinha fazendo antes do bebê. Ao fazer isso, o pai simbólico se apresenta à criança como aquele que regula o desejo materno, que possui os símbolos que a atraem. Assim, o bebê percebe que o paraíso que ele imaginava ser a mãe é um paraíso furado, incompleto. Isso estimula a criança a ir pelo mesmo caminho da mãe, ou seja, o caminho apontado pelo pai. A mãe retorna para esse caminho, no qual já estava antes do bebê, e a criança adentra nele pela primeira vez. Agora, ambos, bebê e mãe, fazem parte do mesmo mundo, o mundo propriamente humano, simbólico, no qual passamos de símbolo em símbolo buscando completude e satisfação plena.

Para que esse objetivo seja alcançado, não é preciso que essa função paterna simbólica seja exercida pelo genitor. A parceira lésbica que não está no papel de mãe pode exercê-la. Um tio, um avô, um padrasto também podem. Até mesmo o celular da mãe pode ser o suporte do pai simbólico na medida em que a convida a renunciar ao vínculo simbiótico com o bebê e voltar a se interessar pelo trabalho, pelo lazer, pelos estudos. Há muitas crianças que jamais conhecerão seus pais reais, mas, nem por isso, deixarão de contar com um pai simbólico, na medida em que a função paterna se fez presente em suas vidas.

Com base na sua experiência concreta e fantasística com o pai real e com o pai simbólico, a criança forja uma imagem de seu pai, que pode ser marcada pela fragilidade, pela covardia, pela força, pela dureza, pela ausência… Esta “versão” do pai construída pela criança é o que nós chamamos de “pai imaginário”. Enquanto o pai simbólico é necessário para a estruturação do psiquismo do sujeito e não pode ser “visto”, o pai imaginário frequentemente aparece nas associações de nossos pacientes no consultório. Não raro, é em torno dele que se constitui o adoecimento neurótico.


(*) Dr. Lucas Nápoli – Psicólogo/Psicanalista; Doutor em Psicologia Clínica (PUC-RJ); Mestre em Saúde Coletiva (UFRJ); Psicólogo clínico em consultório particular; Psicólogo da UFJF-GV; Professor do Curso de Psicologia da Faculdade Pitágoras GV e autor dos livros “A Doença como Manifestação da Vida” (Appris, 2013), “O que um Psicanalista Faz?” (Ebook, 2020) e “Psicanálise em Humanês: 16 Conceitos Psicanalíticos Cruciais Explicados de Maneira Fácil, Clara e Didática” (Ebook, 2020).

As opiniões emitidas nos artigos assinados são de inteira responsabilidade de seus autores por não representarem necessariamente a opinião do jornal

Comments 1

  1. Marcos Vinicius says:

    Incrível e esclarecedor. Parabéns pelo escrito!

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