Por Dimas Guimarães Perpétuo (*)
No começo de julho de 1937, eu ― já com 16 anos ― estava viajando sozinho com uma tropa de dois lotes de burros e mulas, levando uma carga de café em coco e feijão. Ia de São José de Tronqueiras para Santo Antônio da Figueira, que viria a se tornar Governador Valadares no ano seguinte, isto é: 30 de janeiro de 1938. No caminho, por volta de 3 horas da tarde, passando já pela região do Pontal e faltando apenas quinze quilômetros para o fim da viagem, que era de aproximadamente sessenta quilômetros, fui abordado por um senhor aflito, aparentando uns quarenta e poucos anos, que me cumprimentou:
― Boa tarde.
Respondi cordialmente da mesma forma, levantando levemente o meu chapéu e ordenando à tropa que cessasse a toada. Sem mais delongas, o homem continuou:
― Foi Deus que te trouxe aqui! Desde as primeiras horas da manhã, estou ansioso por alguém que possa me prestar um favor. O meu cachorro de estimação, fiel amigo de todas as horas e companheiro de boas caçadas, amanheceu “azangado” hoje. Eu o amarrei no pé duma árvore, mas não tive coragem de sacrificá-lo, por isso esperava alguém que pudesse dar o tiro de misericórdia nele para mim. Posso contar com seus préstimos?
Respondi que sim e ele continuou:
― Desculpe a minha falta de educação. Eu me chamo “Tiodoro”. Qual é a sua graça?
― Geraldo! ― disse-lhe.
― Pois é, Geraldo, o meu rancho é logo aqui, seguindo esse “triero”. Não se preocupe que eu tenho a arma necessária para o trabalho. Minha esposa e as crianças estão fora, foram ontem pra casa dos pais dela e devem chegar mais tarde, por isso eu estava mais apressado pra acabar com isso, para evitar maior sofrimento para eles.
Então eu deixei a tropa parada ali mesmo e segui o senhor. Pouco mais de cinquenta metros distante da estrada, nos deparamos com uma choupana de tamanho médio, rebocada, caiada de branco com janelas e portas azuis, coberta de “tabuinhas”, com um jardim florido na frente, bem conservada e de aspecto aconchegante. Meu anfitrião disse:
― O cachorro está no fundo do quintal. Pode ir chegando que eu vou pegar a arma.
Passei pelo lado da casa e me deparei com o animal acorrentado à árvore, como ele dissera. Um cachorro do tipo pastor belga, pelagem negra e olhos vermelhos, devido à doença, bastante agressivo, mas bem seguro por boa coleira de couro cru e forte corrente metálica. Nisso ele chegou, entregou-me uma espingarda chumbeira de dois canos, marca “Laporte”, de aparência usada, mas bem conservada, e disse:
― Está carregada com tiro pra caititu. Caso necessário, pode usar os dois tiros. Só te peço que me espere entrar em casa, pois não quero assistir à cena.
― Está bem.
Logo que ele entrou, eu me aproximei do animal, que esticou a corrente para o meu lado em tom ameaçador, latindo e rosnando, boca espumando e esperneando para todos os lados ferozmente. Parei a uns cinco metros, mirei o “ferro” no meio da testa dele e puxei o gatilho. Só bastou um tiro: o bicho caiu estremecendo e logo quietou. Notei que a citada árvore se tratava de um pé de manga, novo, porém já produzindo bem, inclusive carregado de flores. Então me aproximei um pouco mais e vi que o cachorro, devido à agressividade, descascou a dentadas o tronco da árvore desde o chão até onde ele conseguia alcançar. Nisto chegou o Seu Teodoro, enxugando os olhos avermelhados com um lenço que guardou na algibeira, e disse:
― Geraldo, muito obrigado pelo serviço. Pode prosseguir sua viagem e deixe o resto comigo, que vou tratar de enterrar o pobre animal.
Então comentei com ele:
― Seu “Tiodoro”, devido ao tronco descascado dessa maneira, a mangueira é capaz de não sobreviver, né?
― É verdade, Geraldo, mas não vou derrubá-la. Vou esperar pra ver o que acontece.
Nesse ponto me despedi e tratei de retomar a minha viagem.
Cinco meses depois, já em meados de dezembro, fazendo o mesmo trajeto, quando cheguei na entrada da propriedade do senhor Teodoro, lá estava ele com uma foice, roçando o trilheiro que dava para sua casa. Aproximei-me e o cumprimentei:
― Boa tarde.
― Boa tarde Geraldo, como vai?
― Bem, graças a Deus, na luta de tropeiro como sempre.
Então começamos a conversar, relembrando o fato que nos deu a conhecer, aí me lembrei do pé de manga e perguntei:
― E o pé de manga, sobreviveu “seu Tiodoro”?
Ele parou por uma fração de segundo como se não quisesse dizer, adquiriu um tom sério e, olhando-me nos olhos, disse:
― Geraldo, ele sobreviveu, mas é inacreditável o que aconteceu com ele! Acho que ele “azangou” também! Só você vendo! Você pode vir comigo ver?
Então, movido pela curiosidade, deixei a tropa ali mais uma vez e acompanhei o “seu Tiodoro”, pensando com meus botões: como pode uma árvore “azangar”? Chegando lá, eu me surpreendi com o que vi e tive que concordar com ele. Lá estava o pé de manga carregado, mas não só de manga! Tinha goiaba, laranja, mexerica, araçá, gabiroba, maçã, pera, uva, num dos galhos mais grossos via-se duas melancias penduradas e o tronco, no lugar onde o cachorro descascou com os dentes, estava coberto de jabuticabas graúdas e pretinhas! hahahaha
História do tropeiro Geraldo Bonifácio Guimarães, nascido em 05/06/1921.
(*) Escrita pelo primo: Dimas Guimarães Perpétuo.
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