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Como se desenvolve a autoconfiança (parte 02)

D. Lucas Nápoli (*)

Vou iniciar a coluna desta semana com uma questão teológica. Se você não é cristão, fique tranquilo. Não pretendo fazer nenhum tipo de proselitismo ou doutrinação. Deus me livre disso! Meu objetivo é apenas utilizar um aspecto da teologia cristã como analogia para pensarmos juntos nossa questão principal que é o desenvolvimento da autoconfiança. Portanto, apenas acompanhe o raciocínio. Eu prometo que vai fazer sentido no final.

De acordo com a teologia cristã, o homem Jesus de Nazaré, nascido na região da Palestina há pouco mais de dois mil anos, era o próprio Deus “encarnado”. E por que o Criador “decidiu” rebaixar-se e assumir a forma humana? Porque a criatura humana é mortal e Deus precisava morrer. Sim, talvez você nunca tenha sido exposto ao núcleo do cristianismo dessa forma, mas é isso mesmo que você acabou de ler: Jesus veio ao mundo com o objetivo de morrer. Com efeito, somente a morte de um homem-Deus poderia pagar a dívida que o homem no início da criação havia contraído com Deus. A morte de quinze bilhões de homens “normais” não seria suficiente para quitar essa dívida. Afinal, uma dívida com o Infinito é uma dívida… infinita. Portanto, somente o próprio Infinito poderia pagá-la.

Mas por que eu estou falando sobre isso? Porque se considerarmos que o objetivo principal de Jesus na terra era o de oferecer-se em sacrifício para pagar o calote humano, podemos nos perguntar: por que, então, Ele passou cerca de três anos fazendo uma série de milagres? De fato, o que levou o Nazareno à morte foi muito mais o seu ensino, que revelava a hipocrisia religiosa da época, do que seus milagres. Por que será, então, que Jesus ficava fazendo curas, ressurreições e multiplicações de alimentos, por exemplo?

A minha (não tão) humilde opinião – e aqui retomo finalmente nosso tema principal – é a de que Ele precisava fazer isso para que as pessoas acreditassem que Ele era realmente quem dizia ser, isto é, o Filho de Deus. Afinal, como se diz hoje em dia, “falar, até papagaio fala”. Se Jesus apenas ficasse repetindo a torto e a direito que era a encarnação de Deus, provavelmente apenas uns gatos pingados o seguiriam – vide, por exemplo, o número de “fiéis” do famigerado Inri Cristo que jura de pé junto que é a reencarnação do Nazareno…

Jesus precisou fazer coisas divinas para que seus contemporâneos conseguissem acreditar que Ele era realmente divino. Qualquer um pode falar que é Deus, mas só o próprio Deus em pessoa pode fazer reviver um amigo que já estava enterrado há quatro dias.

Observar que a fé dos judeus em Jesus só nasceu em função dos milagres que ele realizou nos ajuda a identificar quais são as condições necessárias para o desenvolvimento da autoconfiança. Com efeito, expliquei na coluna anterior que a autoconfiança é a fé que uma pessoa tem na sua própria capacidade de superar desafios.

Ora, assim como a fé em Jesus, a fé que caracteriza a autoconfiança também depende da existência de milagres. Contudo, no caso da autoconfiança, não se trata de milagres reais, ou seja, de acontecimentos que contrariam as leis da natureza. Os milagres que criam as condições para o florescimento da autoconfiança são milagres imaginários, subjetivos, que só são milagres de fato aos olhos daquele que o experimenta.

Consigo imaginar um leitor se perguntando: “Como assim, Lucas? Explica melhor.”. Com prazer! Vamos lá:

Na primeira parte deste texto eu disse que a autoconfiança, diferentemente da coragem, é um afeto involuntário e que, portanto, brota de certas marcas psíquicas profundas geradas por experiências infantis. Também disse que essas marcas são produzidas por experiências que possibilitam ao sujeito perceber-se como sendo capaz de superar desafios.

Ora, quando somos crianças não temos muitos recursos físicos e psíquicos para lidar com desafios. Pelo contrário: somos extremamente frágeis e dependentes dos cuidados dos adultos. Nesse sentido, podemos nos perguntar: como é que a criança vai poder passar por experiências de se sentir capaz de vencer desafios se ela mal consegue ficar sozinha por muito tempo?

É aí que entram os “milagres”. De fato, a criança deixada à própria sorte dificilmente conseguirá vivenciar situações que a farão acreditar na própria potência. Um menino de 3 anos, sem o apoio de seus cuidadores primários, só conseguirá certificar-se de sua fragilidade e impotência. Todavia, quando a criança conta com o suporte ativo dos pais, ela se torna capaz de fazer uma série de coisas. Quando uma mãe, por exemplo, levanta sua filha para que ela alcance um determinado brinquedo ao invés de simplesmente pegar o objeto e entregá-lo à criança, a menina vivencia uma experiência mágica: ela está conseguindo fazer algo que, a princípio, sua condição não permitiria.

A passagem frequente e consistente por experiências “miraculosas” (aos olhos da criança) como essa vão levando o sujeito a desenvolver uma convicção que, se fosse posta em palavras, poderia ser expressa da seguinte forma: “Eu posso, eu consigo, sou potente!”. E é justamente essa fé na própria capacidade que está no núcleo da autoconfiança.

Portanto, podemos dizer que uma pessoa se torna autoconfiante quando nas dimensões mais profundas de sua alma foram sendo depositadas consistentemente as marcas dos “milagres” proporcionados pelo outro. Em outras palavras, é a experiência constante de ter conseguido superar desafios com o suporte do outro que leva o sujeito a acreditar que é capaz de ultrapassar obstáculos sozinho.


(*) Dr. Lucas Nápoli – Psicólogo/Psicanalista; Doutor em Psicologia Clínica (PUC-RJ); Mestre em Saúde Coletiva (UFRJ); Psicólogo clínico em consultório particular; Psicólogo da UFJF-GV; Professor do Curso de Psicologia da Faculdade Pitágoras GV e autor dos livros “A Doença como Manifestação da Vida” (Appris, 2013), “O que um Psicanalista Faz?” (Ebook, 2020) e “Psicanálise em Humanês: 16 Conceitos Psicanalíticos Cruciais Explicados de Maneira Fácil, Clara e Didática” (Ebook, 2020).

As opiniões emitidas nos artigos assinados são de inteira responsabilidade de seus autores por não representarem necessariamente a opinião do jornal.

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