O live action de ‘A Pequena Sereia’ (personagem interpretada pela linda e talentosíssima Halle Bailey) retrata a conhecida história de uma jovem, metade humana, que vive no fundo do mar. Mas ela sonha em conhecer a superfície e estar ao lado de seu amado príncipe, até então, inalcançável a ela por motivos naturais. Afinal, ela também é metade peixe, o que a impossibilita de conviver com os seres humanos no mesmo habitat.
Este filme, na minha visão, ilustra os sonhos e amores impossíveis de alguém, o preço que este alguém está disposto a pagar e os contrastes que essa obsessão pelo impossível pode gerar no meio do percurso. A começar pelo fato de que, por meio de um ‘pacto de sangue’ feito com a vilã Úrsula, Ariel abre mão da própria identidade e de sua linda voz, para simplesmente ganhar um par de pernas e, então, chegar aonde deseja. Quando Ariel “se vende” para a vilã Úrsula, a mágica acontece. Ela vai parar na superfície e, finalmente, poderá ficar perto do homem por quem se apaixonou.
O enredo, por si só, já nos convida a refletir sobre a romantização dos sacrifícios e riscos necessários para alcançar um ‘sonho de princesa’. E, claro, é o que dá toda a emoção do filme. Mas, além da ousadia de Ariel em busca da vida terrena e do grande amor, há outros pontos emocionantes também. Aliás, nem acredito que cheguei à metade do texto sem citar a característica mais comentada pelo público desde a primeira divulgação do live action: a Ariel é preta! Mas não é só isso que impressionou o público que cresceu assistindo as personagens pretas na condição de subservientes, vilãs ou amigas do protagonista.
Quando Ariel vai para a superfície e entra no palácio real, ainda sem vestimenta adequada, é recebida pelos empregados da rainha. A elegante e respeitada rainha, mãe do príncipe que conquistou o coração de Ariel, é uma mulher preta de pele retinta! Mas calma que ainda fica melhor.
O mordomo e os demais empregados são brancos. Entre esses, há apenas uma mulher preta, que cumpre um papel aparentemente superior ao dos demais empregados do palácio, pois ela delega as funções. Então após uma ordem dela, os empregados brancos imediatamente providenciam os aposentos e os cuidados com a aparência de Ariel. Um delicado choque estrutural (que eu particularmente amei). A letra da música ‘Zumbi’, lançada em 1974 pelo grande músico Jorge Ben Jor, detalha alguns contrastes das cores que marcaram o período colonial e o começo de uma era racista no Brasil. “Ao centro senhores sentados. Vendo a colheita do algodão branco (branco, branco…). Sendo colhidos por mãos negras”. Pois bem, 49 anos depois desse lançamento, em 2023, ali estava eu, na sala de cinema, assistindo a um contraste nunca visto antes ao longo da vida, pelo menos por mim, em um filme da Disney: mãos brancas vestindo, calçando, dando banho, penteando, alimentando e, de todas as formas, servindo pessoas pretas com a maior naturalidade.
Acho engraçado isso ser tão extraordinário para mim. E também acho graça quando dizem que “hoje em dia, tudo é racismo”. Porque sim, é racismo mesmo (risos). Não só hoje em dia, mas sempre foi racismo. Hoje em dia a gente só tem coragem de falar o que já é! E tentamos fazer diferente. É o que a Disney está fazendo. Penso que inverter a ordem dos tons de pele na hierarquia das personagens pode ser um bom começo. Se fôssemos todos iguais como os descrentes do racismo tanto falam, eu teria chegado neste fim de texto falando ainda sobre o que comecei no primeiro parágrafo: a jornada de Ariel em busca de viver na superfície e se casar com um príncipe.
Mas não. Não adianta fingir. O ‘burburinho’ principal desde os primeiros anúncios do filme é que “Ariel é preta”, meus amigos. Se isso não foi visto com naturalidade, é porque não é natural, ainda. E se não é natural, é porque o racismo prevalece. Ela é uma sutil afronta para o público que esperava uma protagonista branca. Ou empregados de pele preta, pelo menos.
Então sim, Ben Jor, como dito no refrão da canção Zumbi, ‘Eu quero ver’ muito mais.
(*) jornalista e repórter do DIÁRIO DO RIO DOCE
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