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Indecisão crônica: as duas principais causas

por Dr. Lucas Nápoli (*)

Os seres humanos não nascem sabendo viver. Esta é uma constatação óbvia, mas frequentemente esquecida. Não raro sonhamos com a fantasia de uma existência sem dúvidas e hesitações. De fato, uma das consequências do fato de que não nascemos sabendo viver é a experiência da dúvida – fenômeno que não se faz presente em nenhuma outra espécie animal a não ser na humana. Só os exemplares de Homo sapiens vivenciam esse estado desconfortável de não sabera priori o que escolher, experiência que faz parte do que a Psicanálise denomina de “divisão subjetiva”. Não por acaso, houve até quem dissesse que a dúvida era a evidência indiscutível que nós de fato existimos. Refiro-me a René Descartes, filósofo que se notabilizou por sua famosa conclusão: “Penso, logo existo”, que poderia muito bem ter sido enunciada como “Duvido, logo existo”.

A dúvida, portanto, é uma das marcas singulares do humano. Ao contrário de uma lesma, de um hipopótamo ou mesmo de um cão doméstico, que simplesmente respondem sem titubear a estímulos, os seres humanos possuem a capacidade de avaliar suas possibilidades de ação antes de optarem por um percurso ou outro. Essa capacidade, que nós tradicionalmente denominamos de “escolha”, é uma dádiva e uma vantagem significativa, mas pode se converter facilmente em fonte de muito sofrimento psíquico. Afinal, diferentemente dos outros animais, nós temos a consciência de que ao escolhermos um determinado curso de ação estamos naturalmente abandonando todos os outros possíveis. Toda escolha, portanto, implica num processo de luto das opções não escolhidas.

Essa consciência dos sacrifícios inerentes a qualquer decisão é um dos fatores que contribuem para que algumas pessoas sofram excessivamente quando precisam fazer determinadas escolhas. Saber que o universo paralelo da opção B deixa automaticamente de existir no momento exato em que decido pela opção A, pode ser extremamente angustiante para alguns indivíduos. É provável que tais pessoas sofram tanto com isso, porque ao longo de seu desenvolvimento não aprenderam adequadamente a lidar com perdas. De fato, podem ter sido levados, desde muito cedo, na vida, a fantasiar com um mundo onde todos os caminhos podem ser trilhados ao mesmo tempo, onde tudo pode ser conciliado sem que se precise renunciar a nada. Pessoas que estão nessa categoria sofrem, portanto, de indecisão crônica porque se rebelam consciente ou inconscientemente contra os limites impostos pelo espaço e pelo tempo. Em linguagem psicanalítica, diríamos que tais pessoas relutam em aceitar a castração, isto é, a renúncia à satisfação plena – condição sine qua non da existência.

Por outro lado, há pessoas cuja dificuldade para fazer escolhas não está tão ligada à resistência a abandonar possibilidades, mas ao medo excessivo de fazer escolhas equivocadas. Friso que se trata de um temor excessivo, porque é natural e benigno certo grau de receio em relação à possibilidade de escolhermos alternativas menos eficientes ou vantajosas. O nome disso é cautela ou prudência. Só uma pessoa irresponsável faz escolhas sem pensar nas possíveis consequências das alternativas em jogo e sem temer a possibilidade de errar. Não obstante, a maioria das pessoas aceitam o risco que se faz presente em qualquer decisão e optam por aquilo que lhes parece mais proveitoso no momento, cientes de que há uma probabilidade de estarem erradas. Todavia, existem alguns indivíduos que demoram exageradamente a fazer suas escolhas ou simplesmente não conseguem tomar certas decisões, deixando-as ao sabor do curso natural das coisas.

Pessoas que se enquadram nessa descrição são prisioneiras de outra fantasia: aquela que se caracteriza pelo que eu costumo chamar de “esperança no gabarito da vida”. Explico: indivíduos que têm muito medo de fazer escolhas erradas; inconscientemente acreditam que existe em algum lugar um livro contendo o gabarito de todas as escolhas que elas precisarão fazer na vida. Nesse livro estariam descritas todas as situações que a pessoa iria vivenciar com as respectivas escolhas corretas que deveriam ser feitas. É por isso que sujeitos nessa condição se angustiam, desesperadamente, quando estão diante de decisões, especialmente aquelas que podem gerar consequências muito significativas. Inconscientemente, elas querem tirar nota 10 na prova da vida e, assim, esperam que lhes apareça repentinamente as “respostas corretas” das questões que a existência lhes apresenta. Tais indivíduos não conseguem admitir a realidade de que a vida não possui gabarito e de que, portanto, toda decisão comporta algum grau de aposta.

Enquanto as pessoas da primeira categoria têm dificuldades para fazer escolhas porque não querem abdicar de nenhuma das possibilidades que a vida lhes oferece, os indivíduos do segundo grupo resistem a renunciar à imagem idealizada que fazem de si mesmos. Com efeito, quem sofre demasiadamente com a indecisão, porque acredita num suposto gabarito da vida, é porque não suporta a possibilidade de enxergar a si mesmo como alguém que erra. São pessoas que provavelmente não aprenderam ao longo da vida a fazer o luto de seu eu ideal. Inconscientemente continuam fantasiando com um mundo onde podem ser perfeitos, fazendo apenas escolhas corretas.

(*) Psicólogo/Psicanalista, Doutor em Psicologia Clínica (PUC-RJ), Mestre em Saúde Coletiva (UFRJ), Psicólogoclínico em consultório particular,  Psicólogo da UFJF-GV, Professor e Coordenador do Curso de Psicologia da Faculdade Pitágoras GV e autor do livro “A Doença como Manifestação da Vida” (Appris, 2013).

As opiniões emitidas nos artigos assinados são de inteira responsabilidade de seus autores por não representarem, necessariamente, a opinião do jornal.

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