A imaginação de uma criança é a coisa mais pura que existe. Beira o divino a capacidade de acreditar e de se sentir parte de qualquer fantasia, por mais irreal que pareça às mentes adultas. O meu velho vô Ely sabia disso.
Era época de férias, família reunida na varanda, o velhinho sentado em uma cadeira e muitos netos à sua volta, ouvindo com atenção. Eu estava lá. Era a história de um fazendeiro muito rico, dono de um rebanho enorme. Não sei por que cargas d’água, ele precisava levar os animais para outro lugar.
O tal rei do gado conduzia sua boiada gigantesca pela estrada. A gente imaginava aquela imensidão de bois. Eles caminhavam, caminhavam. O destino era longe, e a quantidade de reses era colossal. Até que avistaram uma ponte sobre o caminho e começaram a travessia, por baixo. Passou o primeiro animal, o segundo, mais alguns.
E o velho narrador parou de falar.
— Continua, vô!
— Espera, os bois ainda estão passando debaixo da ponte.
A curiosidade foi a mil, mas aguardamos uns minutos. Mais um pouco, outro tanto. Os bois ainda passavam, eram mesmo muitos. E assim foi. Perguntamos mais algumas vezes, mas a resposta era sempre igual.
Esperamos aquela tarde, o dia seguinte, até as próximas férias. Quando nos encontrávamos de novo, depois da “bença”, já vinha a pergunta: “Ô, vô, os bois já acabaram de passar debaixo da ponte?” Ainda não, ainda faltavam muitos. Muitos.
A caminhada durou meses, anos, décadas.
Nós crescemos, nos tornamos adolescentes, viramos adultos, e a história seguiu viva até os últimos dias do vô. Já bem debilitado, com quase cem anos de idade, ele lutava pela vida em uma cama de hospital. Sua consciência ia e vinha. Um primo o acompanhava, e meu irmão fez uma chamada de vídeo, para ver o senhor Ely e saber como andava sua saúde.
— Bença, vô! E os bois, já acabaram de passar debaixo da ponte?
O velhinho reuniu forças e sussurrou bem baixinho:
— Tá na metade.
Uns 30 anos depois de começar a travessia, o rebanho atingia a marca de 50% do gado sob a ponte. Poucos dias depois, o vô nos deixou. Fez ele próprio a sua travessia para outro plano, sem nos revelar o final da história – provavelmente a primeira contada em tempo real no mundo.
Tomara que exista mesmo vida após a morte e que, um dia, ele reúna a família para encerrar o caso, enfim. Quem sabe, começar o próximo.
(*) Mineiro, jornalista e mochileiro. Já rodou meio mundo e, quando não está vivendo histórias por aí, está contando alguma. Ou imaginando, pelo menos. É um fã da arte de contar histórias: as dele, as dos amigos e as que nem aconteceram, mas poderiam existir.
Acredita no poder que as palavras têm de fazer rir, emocionar e refletir; de arrancar sorrisos, gargalhadas e lágrimas; e de dar vida, outra vez, às melhores memórias. É autor do livro de crônicas “Isso que eu falei” e publica textos no Instagram no @isso.que.eu.falei.
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