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Os desafios da elaboração do luto na pandemia: a presença do inesperado

por José Luiz Cazarott (*)

Uma pandemia, pela sua natureza singular e pela sua amplitude, é e será um campo de reflexões sob os mais diversos ângulos. Começamos, pois, com o que foi mais dramático tanto para os que se foram como para nós que permanecemos vivos: o luto da despedida.

Antes de tudo, para nós os da área da saúde, a pandemia se apresentou como um desafio especial por dois motivos (dentre outros tantos): tratava-se de lidar com um patógeno desconhecido e, a seguir, com as dimensões antropológicas que, em certos aspectos, foram inesperadas e em outros simplesmente impossibilitadas de ser consideradas.

É dramático para os trabalhadores da saúde ter de se deparar com algo para o qual não se tem conhecimentos precisos, exatamente, pelo efeito inseguro do tratamento que disso decorre. A formação para a área da saúde, no mais das vezes, tem dimensões de treinamento, o que ajuda muito, mas também tem um espaço para o inesperado e para agir de modo autônomo no calor da refrega.

No geral, os que lidam com saúde – e mais precisamente com as doenças – são ambiciosos: querem que a vida saudável e eventualmente longa seja a grande meta e que seja alcançada. É um sonho belo, por isso, passível de ser fadado a frustrações. O fracasso diante de uma terapia traz sobre o profissional uma “nuvem” de incertezas, afinal fizera o que lhe parecia ser o melhor. No caso da pandemia, o insucesso deveu-se aos procedimentos ou ao desconhecimento? Nesse impasse, evidentemente, muito se aprendeu e se conseguiu, podemos até dizer com espanto, num tempo extremamente curto.

Os profissionais da saúde, no geral, tiveram ao longo da pandemia – e em certos casos persiste ainda hoje – uma sobrecarga de trabalho desumana, isso em termos de horas de trabalho e tensão in loco. Alie-se a isso a carga extra dos efeitos de insucesso que se traduziam em imagens de covas e mais covas sendo abertas, testemunhando, de um modo quase que direto, o insucesso dos procedimentos. Não é difícil entender que este “resultado” também tenha impactado no clima do trabalho e na própria imagem que o profissional tinha de si. O que de algum modo gerava uma serenidade era o fato de que – apesar dos pesares – se estava fazendo tudo o que se podia, mesmo em clima de incerteza. As imagens de correrias e a azáfama que testemunhamos ao longo de dois anos são as provas disso.

Um aspecto que infelizmente é pouco trabalhado – e nessa pandemia ficou evidente – é que não sabemos lidar com as emoções de modo apropriado. Ainda que os profissionais sejam “formados” para saber lidar com os eventos emocionais e mesmo dramáticos, o que aconteceu na pandemia foi algo que cai fora de todas as expectativas e formações. Além disso, lidar com emoções é demorado para os padrões de “linha de montagem” a que os profissionais às vezes são submetidos.

Focando um pouco mais nesse aspecto, em resumo, as teorias contemporâneas sobre o assunto afirmam que uma emoção traz em si três dimensões: a fisiológica (componentes hormonais), a psicológica (sentimento) e a antropológica (seu significado). Dentre todas as emoções, talvez as mais complexas sejam as envolvidas no processo de luto por um ente querido. Quando víamos cenas em que os caixões dos mortos simplesmente saíam para ser enterrados quase sem que os parentes pudessem nem proceder a um velório mínimo deste nome, podemos levantar a questão da elaboração dessas emoções. Em nossa tradição, a separação de um ente querido tem passos que necessitam de espaço e tempo. A saída da casa ou do hospital, o espaço do velório, as convergências dos parentes e amigos, celebrações religiosas ou leigas e, por fim, o sepultamento. Todos esses passos remetem muito mais aos vivos e seus processos pessoais de “elaboração” de despedida que propriamente à pessoa do falecido. Quais os efeitos disso?

(*) Patrono: Mário de Andrade Cadeira 13
Academia Valadarense de Letras
Doutor de Psicologia e Membro Ativo da Royal AnthropologicalInstitute (Londres) e do Anthropo.

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