O vídeo da mulher exigindo que tutor e pitbull saiam do elevador por ela ter medo de cachorro viralizou nos últimos dias reacendendo um tema que os condomínios brasileiros conhecem bem: como equilibrar convivência, informação e direitos quando um simples deslocamento de elevador se transforma em palco para conflitos.
Nas imagens, gravadas pela própria moradora, uma mulher exige que um homem, seu filho e um pitbull deixem o elevador para que ela possa utilizá-lo sozinha. Ela afirma ter medo do animal e diz não se sentir segura em permanecer no mesmo espaço que ele.
O tutor tenta dialogar. Explica que a cadela é dócil, estava devidamente contida com coleira e focinheira, e que ele já ocupava o elevador quando ela chegou. Também lembra que seu filho está com o braço quebrado, o que torna inviável subir escadas. Nada disso, porém, acalma a moradora, que insiste: se ele está com um pitbull, deve descer e seguir pela escada.
O vídeo não mostra o desfecho, mas mostra algo maior: a colisão entre o medo individual e o desconhecimento coletivo sobre normas, direitos e deveres dentro de um condomínio.
Medo não é crime — mas não pode virar violação de direitos
É importante reconhecer: medo existe, é humano e deve ser respeitado. Mas o que o vídeo também revela é que esse medo não está nascido apenas do tamanho ou da presença de um cão, e sim de um estigma profundamente enraizado — especialmente quando se trata de raças como o pitbull, frequentemente discriminadas apesar de não serem, por lei, consideradas perigosas.
No Brasil, não há proibição de nenhuma raça canina. Não existe lista de cães “proibidos” ou “mais agressivos” definida por legislação federal. O que existem são o Projeto de Lei 417/25 que propõe regras para cães de raças ‘potencialmente perigosas e normas de responsabilidade do tutor: uso de coleira, focinheira quando necessário, controle efetivo e convivência harmônica. No vídeo, todos esses requisitos foram rigorosamente observados.
A lei, portanto, não sustenta a exigência da moradora. E mais: o elevador é área comum, e o direito de ir e vir vale igualmente para pessoas, tutores e seus animais domésticos, que há muito deixaram de ser vistos como “objetos”.
Quando o condomínio vira palco de desinformação
O episódio escancara algo que síndicos e administradores veem diariamente: a confusão entre regras internas, leis e interpretações individuais. Muitos acreditam que existe uma proibição geral ao uso do elevador por animais, mas isso não é verdadeiro.
A legislação federal não impede cães em elevadores. O que existe é a autonomia condominial para definir regras internas — como uso do elevador de serviço, exigência de equipamentos de segurança. Ainda assim, nenhuma dessas regras autoriza um morador a expulsar outro do elevador.
O que o tutor fazia naquele momento era exercer um direito legítimo: circular livremente com sua cadela, também moradora, também parte da família, também usuária do condomínio. A jurisprudência brasileira já reconhece os animais como seres sencientes, com capacidade de sentir, sofrer e interagir. A atualização do Código Civil caminha na mesma direção. O cão não é “coisa”, não é “objeto que pode ser removido para que outro passe”. É um sujeito de proteção jurídica.
Nesse sentido, a exigência da moradora — ainda que movida por medo — produz um constrangimento que pode gerar responsabilidade civil e até criminal, dependendo de como a situação se desenvolvesse.
O bom senso que deveria ter subido naquele elevador
Quando falamos de convivência em espaços coletivos, o bom senso costuma ser uma bússola mais eficaz do que qualquer regimento interno. A regra é simples: quem já está no elevador tem preferência. Se o morador está no interior com seu cão, devidamente contido, cabe a quem chega depois aguardar o próximo. Da mesma forma, se a situação fosse invertida — a mulher estivesse no elevador e o tutor chegasse acompanhando o animal — caberia a ele aguardar o próximo embarque.
O que não cabe é transformar o medo pessoal em uma ordem unilateral que restringe o direito do outro. A convivência exige respeito, informação e, acima de tudo, consciência de que o condomínio é coletivo. E coletivo significa plural.
Quando a internet aperta “compartilhar” antes de apertar “investigar”
Curiosamente, toda essa discussão que tomou grandes proporções tem um detalhe que poucos sabem: o vídeo é uma encenação. O tutor é criador de conteúdo, a mulher é esposa dele, a criança é filho do casal e a pitbull é a pet da família. Eles produzem vídeos inspirados em situações reais, em formato de novelinha, para levantar debates cotidianos.
Nada disso diminui o valor da reflexão — e talvez até o amplifique.
O perigo de reproduzir vídeos sem verificar a procedência
A repercussão intensa mostra como assuntos envolvendo animais de estimação, convivência e regras condominiais despertam emoções fortes. Mas também mostra o quão rápido julgamentos são formados quando um vídeo chega descontextualizado. Reproduzir conteúdo sem checar a veracidade pode inflamar discussões, fortalecer preconceitos e gerar ainda mais desinformação.
No fim, mesmo sendo uma encenação, o episódio funcionou como espelho de problemas reais: a intolerância disfarçada de medo, o desconhecimento das leis, o estigma injusto sobre certas raças e a dificuldade — ainda muito presente — de reconhecer o animal como parte da comunidade condominial.
E talvez essa seja a lição mais importante que o elevador deixou antes de fechar as portas.
(*) Cleuzany Lott é advogada com especialização em Direito Condominial, MBA em Administração de Condomínios e Síndico Profissional, Presidente da Comissão de Direito Condominial e membro da Comissão de Direito Animal da da 43ª Subseção da OAB-MG, Governador Valadares, 3ª Vice-Presidente da Comissão de Direito Condominial de Minas Gerais, síndica, jornalista e palestrante.






