Chico Buarque já deu muitas joias de presente ao Brasil e ao mundo. Ao contrário de alguns itens do Museu do Louvre, o tesouro composto pelo gênio carioca não pode simplesmente sumir. Longe da França, a obra de Francisco é habitante de memórias vivíssimas, que, em constante exercício de lembrança, apenas multiplica o alcance e o brilho. Canções, livros, entrevistas e vigor para inspirar muitas gerações. Uma dessas belezas é a marcha “Noite dos Mascarados”, um som ritmado em compasso de ansiedade e libertinagem, com um trecho que diz assim:
“Quem é você, diga logo
Que eu quero saber o seu jogo
Que eu quero morrer no seu bloco
Que eu quero me arder no seu fogo”
Talvez ninguém — pessoa física ou jurídica — saiba ao certo quem realmente é, até que algo aconteça. E todo dia acontece alguma coisa. Organizações e marcas vivem tentando controlar a imagem e o discurso, jogando um jogo cujo resultado esperado é a conexão, a fidelidade de um bloco, o reconhecimento de uma fantasia que quer se fazer real. O Burger King, por exemplo, é conhecido por fazer o hambúrguer arder no fogo, grelhado como churrasco. A rede também é reconhecida por sua irreverência, denotada por ações e campanhas com o tempero do inesperado.
O mais recente movimento da rede fez um barulho danado. Mostrando agilidade e musculatura para aprovar e produzir um conteúdo em tempo recorde, a agência AlmapBBDO colocou lado a lado os recém-desafetos Popó e Wanderlei Silva. No final de setembro, os times dos lutadores protagonizaram um espetáculo lamentável de violência após o embate das estrelas no evento Spaten Fight Night. Foi feio. Mas a publicidade brasileira mais uma vez fez bonito e enxergou um golpe de sorte na briga generalizada. Para promover o King em Dobro, que oferece dois sanduíches a partir de R$ 25,90, o BK lançou um vídeo com os astros da luta interagindo e desferiu um mote indefensável: “A porrada já comeu, agora quem come é você”. George Foreman, lenda do boxe que eternizou uma linha de grelhas para fazer churrasco, não conseguiria ser mais preciso.
Popó e Wanderlei sempre foram muito profissionais e bastante simpáticos. A publicidade brasileira, na maior parte do tempo, também. Assim como as lutas envolvem uma encenação, uma provocação cujo intuito é galvanizar o público, a comunicação também alimenta esse desejo. Vale muito menos discutir o que é ou não “verdade”, essa palavra tão sujeita a subjetividades, ingenuidades, conveniências e inteligências artificiais. Importa mesmo é que se tenha algo bacana, um combo saboroso de ilusões nas quais vale a pena acreditar. Tipo aquele pedaço de carne do Cypher em Matrix. É esta a nossa natureza.
No grande conto “O Monge Negro”, de Anton Tchekhov, o personagem Kovrin conversa com um monge fruto de uma lenda. A certa altura, Kovrin questiona a existência da entidade, que responde de maneira formidável:
“Eu existo na tua imaginação, e como a tua imaginação faz parte da natureza, devo também existir na natureza.”
É desse jeito que uma ideia surge de um criativo e passa a existir no outro, nas redes sociais e na história. Foi no álbum ao vivo “Público”, da Adriana Calcanhotto, lá no longínquo ano 2000, que conheci a poesia do português Mário de Sá-Carneiro. Na faixa 7 do disco, ela interpreta o poema “O outro”, que consiste nesta simplicidade arrebatadora.
“Eu não sou eu
Nem sou o outro
Sou qualquer coisa de intermédio
Pilar da ponte de tédio
Que vai de mim para o outro”
O meio e algum fim. Assim é no interminável bloco de mascarados da propaganda, do marketing e da vida. Não interessa se os lutadores, ali, eram eles ou “outros”. Se eram qualquer coisa de intermédio de algum humor ou simplesmente homens a fim de um bom cachê — e não tem nada de errado nisso. Pouco importa se é miragem, lenda, fantasma ou armação, desde que seja útil ou divertido curtir e repercutir aquilo. No caso do Burger King, os números avassaladores de interações e compartilhamentos do conteúdo com Popó e Wanderlei Silva compensaram o esforço. Dá até para afirmar que, quando o assunto é criatividade, vale a pena lutar pelo que você “acredita”.
(*) Jornalista e publicitário | Professor na Univale e poeta sempre que possível | Instagram: @bob.villela | Medium: bob-villela.medium.com
As opiniões emitidas nos artigos assinados são de inteira responsabilidade de seus autores por não representarem necessariamente a opinião do jornal.






