(*) Marcos Santiago
Trabalho em um lugar enigmático. Talvez digam… a Caixa de Pandora! De onde ainda se buscam esperanças. Parco seria para com seu significado no mundo das necessidades, mas bem próximo de seu conteúdo visceral. Grande, sem dúvida. Um Leviatã de couro duro e fôlego potente, portador de um útero quente, abaixo das muitas cabeças de Medusa. De fato, se porta como Erisictão – O Tessálio – e pode mesmo encontrar prazer nos indicadores que devoram a própria alma, para gerir uma carcaça descalcificada, vinda de mundos distantes.
Trabalho em um lugar essencial. O povo a quem sirvo, bem o sabe e, olho no olho, me reconhece. De tudo, não me perdi em suas muitas vielas e avenidas. E isso basta. Fora do mecanismo, sou mais que seu apêndice. Em minhas veias correm sangue, para além de metas em holograma e despachos em necrose.
A mitologia ilustra o que de fato, é uma odisseia, mas, é na canção quase moderna que melhor se esclarece o labor por sobre essas terras montanhosas e mares bravios. O lugar de trabalho, materializado em um meritocrático contrato social, e, indispensável para a pax econômica e social do reino, é sim um moinho, o moinho do qual canta Cartola, aos ouvidos desavisados de um astronauta qualquer, e que pode muito bem:
(…) triturar teus sonhos tão mesquinhos, reduzir as ilusões a pó… posto que (…) que de cada amor tu herdarás só o cinismo (…).
Há! Mas esse lugar é mais que a canção doída. Sim, é. Graças dou! Trabalho em um lugar possante, que ainda assim, carnívoro e frígido ou libidinoso e desvairado, permite do labor, calçar meus rebentos, e prover o analgésico àqueles tais, que suportam seu escrutínio, e que o ergueram sobre os próprios pés descalços, aos altos céus.
Nesse lugar, fui seu front. Lá aprendi que o lado de lá geme, mente e luta. Fui também seu corregedor e seu meio, para constatar que o lado de cá luta, geme e mente também. Nas finanças, vi seu tamanho e suas necessidades, suas forças e fraquezas. Na gestão de pessoas, vi seu vazio, preenchido por automatismos em linha de produção, almas iluminadas que foram acorrentadas ao hoje e sem expectativa de um amanhã.
Nesse lugar, não há privilégios divinais ou herdados de um ou outro sangue nobre, ainda que fora dele, haja mal remunerados ou mal acomodados! Passando pela logística, atestei seus remendos criativos, os mesmos remendos suados que senti na direção. No atendimento, percebi o que é ser o primo pobre entre poderes, em cuja despensa sempre tem que caber mais um. Um lugar cujo calcanhar, avistado em praça pública, suporta a estocada justiceira, por pedras de mágoa ou por ocasião da corte e dos subúrbios. No jurídico, vi o que é disparidade de armas, e, no monitoramento, mergulhei nas diversas condutas humanas que perambulam sobre a face de um buraco de minhoca.
No produto do trabalho, ali sim, senti o pulso em relutante frequência vital. Trabalho em um lugar politeísta, semideus de um panteão que me tenciona para uma instável confissão de fé, regada de heresias e penitências, sacerdotes, pecadores e irmãos, também! Moinho, moendo e moído a cada estação.
Sirvo a esse lugar nosso, com suas inclinações e procissões, mas que tem o poder de fazer fermentar o pão sobre nossa mesa. Esse lugar é o lugar onde estás. Cordeiro de Deus, que tirai os pecados do mundo, tende piedade de nós.
(*) Marcos Santiago (santiagoseven@bol.com.br)
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