Famílias, Felicidade e Sociedade
Na edição de 15 de maio de 2020 do Diário do Rio Doce, foi publicado o texto “A família como base da sociedade”, de autoria do pastor Sebastião Arsênio. O título é anunciado como repetição do artigo 226 da Constituição Brasileira, mas os “fundamentos para a família” trazidos na notícia são amparados em versículos do livro bíblico de Gênesis e resumidos em cinco denominações: companheirismo, monogamia, correspondência, heterossexualidade e permanência. Sob o pressuposto de que a família vem sendo ameaçada (através da subestimação de valores morais, da liberação sexual, da ênfase no homossexualismo [sic]*, dos exageros e das ênfases erradas do feminismo, e do progresso das ciências biológicas na reprodução humana), esses cinco princípios seriam uma fórmula garantidora da solidez e da felicidade familiar.
Não obstante, se a discussão sobre a pretensa crise e a felicidade da família ultrapassar os argumentos religiosos, as conclusões são outras.
- Enquanto texto constitucional, o artigo 226 deve ser lido a partir da ideia base de que vivemos em uma sociedade que se pretende democrática e laica. Crenças e valores religiosos são bem-vindos e reconhecidos como constituidores dos que neles acreditam, mas não são legitimadores da vida de todas as pessoas (que são livres a ter, não ter ou mesmo trocar de religião/religiosidade) e das instituições políticas. A esfera pública, voltada a todos sem exceção, deve ser pautada pelo respeito às diferenças e por viabilizar a vivência dessas diferenças. Liberdade, igualdade, solidariedade, pluralidade etc. são seus fundamentos.
- Movimentos sociais, como feminismo(s) e LGBT+, auxiliam na percepção de que há demandas específicas, realidades diferentes, para além do que uma “fôrma” social e/ou religiosa pretende impor ou anunciar como única. A contestação das inúmeras tentativas de controle dos corpos é uma maneira de se buscar uma sociedade que seja cada vez mais sensível às ideias de que liberdade, igualdade e solidariedade não se garantem em abstrato, mas diante do repúdio de que há pessoas com menos direitos do que outras.
- A família permanece sendo espaço central de busca da felicidade das pessoas. O que está em crise é o respaldo jurídico a um único formato de família – heterossexual, necessariamente composto por um pai, uma mãe e filhos. Se pessoas são livres e iguais, cabe a elas a vivência do formato de família mais compatível ao que entendem por felicidade.
- Da mesma maneira, a definição da duração de uma família cabe aos seus próprios membros. Sob as ideias de correspondência e permanência da instituição familiar, situações de violência doméstica, por exemplo, deveriam ser toleradas pelas vítimas, o que é inadmissível.
- O exercício da liberdade não significa ausência de limites. Esses, porém, devem ser fixados racional e intersubjetivamente, em termos de razão pública, isto é, com argumentos a serem debatidos por todos, independentemente de convicções religiosas. Nessa perspectiva, não há argumentos não religiosos consistentes ao anúncio de uma família heterossexual e necessariamente indissolúvel.
Não há fórmula garantidora da felicidade. Ponto de partida importante, porém, consiste em perceber que Estado e sociedade não devem ser dificultadores da vivência daquilo que se é ou se deseja ser. A interferência na vida alheia deve ser excepcionalíssima e justificada racionalmente. Aliás, em tempos de pandemia, é curiosa a dedicada preocupação com a vivência familiar e sexual dos outros: cortina de fumaça que contribui para não tratarmos da gravidade do que diretamente tem impactado tanto a todos.
*Também a insistência no uso do sufixo “ismo”, impregnado de conotações médicas, patológicas, parece surgir como uma tentativa de negação de direitos conquistados já há três décadas. Em 17 de maio de 1990, a Organização Mundial de Saúde (OMS) desclassificou o “homossexualismo” como um distúrbio mental e, desde então, usa-se o termo homossexualidade. Não por acaso, foi essa a data escolhida para ser o Dia Mundial e Nacional de Combate à LGBTfobia. Façamos jus a esse momento histórico.
Comissão de Diversidade Sexual e Gênero da 43ª subseção da OAB/MG
Centro de Referência em Direitos Humanos UFJF-GV
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