Bob Villela (*)
Todas as férias são um momento de eu reduzir a eterna dívida que mantenho no balcão da literatura e do cinema. Na música eu consigo me virar bem ao longo do ano e conservar os débitos em patamares razoáveis, com juros honestos. Quanto aos livros e ao audiovisual, sou um fracasso quando estou no batidão do trabalho. Embora leia sempre, faço isso bem menos do que gostaria. No que concerne aos filmes, a cena é lamentável. Detesto vê-los aos poucos — tipo assistir a uma película em três ou quatro dias — e raramente me organizo para reservar algo como 120 minutos para uma obra. Está aí um bom desafio para 2024.
Pois bem, chegam as férias e eu corro para as intermináveis — e intermitentes — listas dos streamings que assino. É muita coisa. Bate uma ansiedade. Não vai rolar de ver tudo. Nem a metade. Nem 10 por cento dos filmes, séries, documentários e formatos especiais que esses conglomerados despejam nas suas plataformas. Ensaio uma frustração. Mas é isso, afinal, que eles esperam de nós. Ou seja, já sou suficientemente maduro emocional e profissionalmente para compreender que esse é o jogo, e resta-nos a tarefa de jogar com o tempo e a sabedoria que nos são franqueados em cada situação. Então, em vez de um alucinante consumo de estímulos, a manha é tentar fazer com o pouco que se vê o insumo de uma vida mais esclarecida. É isso, por sinal, que tenho experimentado com a leitura, com algum êxito.
Entre as obras audiovisuais que mais mexeram com meus sentidos e sentimentos até o momento, destaco o chileno “El Conde”, uma espécie de comédia misturada com terror e pitadas de surrealismo, com crítica feroz à terrível história recente do Chile. A direção é do excelente Pablo Larraín (recomendo tudo que tem a participação dele), com roteiro que é de uma rara e ousada criatividade. Temos ali uma pequena joia do nosso grande cinema latino. Outro filme muito poderoso é o drama mineiro “No Coração do Mundo”. Estava a fim de vê-lo há algum tempo, e a espera valeu. Não se trata de uma obra fácil para um público habituado a doses de dopamina embaladas em edições aceleradas e pirotecnia tecnológica. Mas quem superar isso terá uma aula deliciosa sobre o Brasil. Estamos precisando.
Por falar em pirotecnia e tecnologia, paguei minha dívida com “Matrix Resurrections” e “Top Gun: Maverick”. Gostei de ambos. Cada um, à sua maneira, teve o cuidado de atualizar a franquia com costumes mais atuais, adotando — ainda que de forma discreta — preceitos progressistas caros à sociedade que queremos. Na saga de Tom Cruise, por exemplo, temos uma equipe com mais diversidade em sobrenomes, gêneros e peles. Isso não impede o filme de ser estadunidense até o fio do cabelo, com todos os clichês que isso envolve. De todo modo, a diversão é garantida. Já no último Matrix, temos o empoderamento feminino como um grande acerto da diretora Lana Wachowski. Tudo isso com muita elegância. Recomendo os dois para quem ainda não assistiu.
Outra coisa que me chamou atenção nos filmes — e isso é algo realmente fascinante — foi a maneira irreverente como eles celebraram ou atualizaram seus legados. Estamos falando de dois produtos icônicos de diferentes décadas do cinema mundial. Mas ambos, humildemente e estrategicamente, foram além de apenas reafirmar suas glórias. Em diversas cenas é possível ver, de forma explícita ou latente, que o roteiro, as cenas e os atores estão rindo daquilo que criaram em outros tempos. Como quem deseja pactuar com o público que, sim, algumas coisas não envelheceram tão bem; mas, de todo modo, ainda podemos nos divertir. Errados eles não estão.
Os remakes de novelas e demais atrações da Globo fazem isso há algum tempo. A publicidade também. Os mamíferos da Parmalat e a pipoca com Guaraná Antarctica já estrelaram muitas versões. Não se trata de algo requentado, caça-níquel ou falta de criatividade, como gosta de apregoar alguma gente ressentida. É só celebração. Se no eterno clássico “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”, o filósofo Walter Benjamin alertava sobre a “aura” perdida a partir da repetição (mas não apenas isso), já faz tempo que a repetição é que cria, celebra, enaltece e cristaliza tantas formas de arte. Que não sejamos inocentes: isso tudo envolve muita grana e pesquisa, entre outros artifícios. Mas que sejamos, então, como Matrix e Top Gun, e que isso tudo envolva também humor e ironia.
Bob Villela
Jornalista e publicitário.
Coordenador dos cursos de Jornalismo e Publicidade e Propaganda da Univale.
Instagram: @bob.villela
Medium: bob-villela.medium.com
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