Você se considera uma pessoa de valor, importante, que merece ser respeitada? Essa pergunta pode parecer descabida para alguns leitores, pois talvez imaginem que todo o mundo a responderia com um enfático “Sim!”. De fato, se eu colocasse essa questão, por exemplo, em uma enquete do Instagram, é bastante provável que mais de 90% das pessoas (chutando por baixo) respondesse afirmativamente. No entanto, falar é fácil. Como diz o ditado contemporâneo, “falar, até papagaio fala”. Mas será mesmo que a imensa maioria das pessoas de fato percebem a si mesmas como valorosas e dignas de serem respeitadas?
Com base em minha experiência clínica, eu diria que não. Vejo com muita frequência em meu consultório indivíduos que se envolvem em situações que, do ponto de vista de um observador externo, seriam inadmissíveis. Refiro-me a relacionamentos amorosos doentios, amizades tóxicas, relações familiares destrutivas etc. Trata-se de situações em que a pessoa se vê constantemente sendo desrespeitada, humilhada, agredida e ameaçada. Quem desconhece as complexidades e vicissitudes da psicologia humana poderia olhar para o indivíduo que se mantém nessas condições e pensar: “Esse aí realmente gosta de sofrer. Afinal, como é que suporta tudo isso? Deve ser masoquista, só pode!”.
Embora saibamos que a possibilidade de experimentar prazer na dor exista para todos os seres humanos, na maioria dos casos a que me refiro não se trata realmente de masoquismo. Em outras palavras, quem se mantém em relações nas quais é abusado e desrespeitado não faz isso porque gosta da humilhação. Na verdade, o problema tem a ver com aquilo acerca do que eu comecei a falar no início desse artigo. O que acontece com essas pessoas é que lhes falta a crença de que são dignas de respeito.
Elas até são capazes de afirmar conscientemente que merecem ser respeitadas, mas, na prática, não acreditam nisso. Assim, se submetem a situações deploráveis e inadmissíveis porque veem a si mesmas como seres sem valor e que não merecem muita consideração. Elas aceitam tudo, toleram tudo, esquecem tudo porque sempre percebem o outro como mais importante do que elas mesmas. Estão sempre relativizando o próprio desejo, pois nunca se consideram suficientemente importantes para fazer valer o que querem. Há diversas origens para isso que eu chamaria de autodesprezo crônico. Comentemos algumas dessas possíveis gêneses.
A primeira delas tem no medo o seu afeto fundamental. Nesses casos, o autodesprezo emerge como uma estratégia defensiva para evitar o abandono. Na história do sujeito há geralmente algumas perdas de vínculos importantes, sobretudo na infância, as quais foram enquadradas pela pessoa como abandonos. Assim, o indivíduo acabou construindo uma imagem de si mesmo como alguém desamparado e que está sempre sob a ameaça de ser novamente abandonado. Essa configuração torna a pessoa extremamente vulnerável a ser explorada pelas pessoas com quem ela se relaciona. Com efeito, um sujeito que está sempre com medo de ser abandonado pelos outros estará disposto a sacrificar qualquer coisa para evitar que isso aconteça. É aí que o autodesprezo aparece. Para impedir que os outros a abandonem, a pessoa torna-se totalmente submissa ao desejo deles acreditando que, se fizer tudo o que querem, não será abandonada. Ela sacrifica o seu respeito próprio e até sua dignidade para não perder o vínculo com o outro. Tal pessoa vive como se estivesse dizendo o tempo todo para si mesma: “Eu não valho nada. O outro está sempre certo e o desejo dele é que deve sempre prevalecer”. Ao pensar dessa forma, o indivíduo se protege visto que, se passar a enxergar o próprio valor e respeitar-se, não mais permitirá ser tratado da forma como vem sendo, o que acabará levando o outro a se afastar – e isso, que a pessoa interpretaria como abandono, é o desfecho que ela mais teme.
Outra gênese possível para o autodesprezo crônico é o complexo de autopunição. Nesse caso, o autodesprezo emerge como uma espécie de penitência à qual o sujeito se consagra inconscientemente. Na história de sujeitos que se encaixam nessa categoria encontramos muitas culpas, a maioria delas exagerada e fantasiosa. São culpas geralmente derivadas de pequenas e inofensivas peripécias infantis em relação às quais o indivíduo não conseguiu se perdoar. As memórias dessas situações (muitas das quais jamais ocorreram, mas foram apenas imaginadas) encontram-se em estado de repressão no Inconsciente. Por isso, o sujeito não consegue recordá-las conscientemente, experimentando apenas um crônico sentimento de culpa que, volta e meia, encontra outras situações concretas (e geralmente insignificantes) para se justificar. Não raro, pessoas com essa configuração se envolvem em relacionamentos amorosos, de amizade ou de trabalho, nos quais são explorados e humilhados. Contudo, apesar de todo o sofrimento que experimentam, não rompem tais vínculos. Diferentemente do que acontece nos casos que descrevi no parágrafo anterior, não se trata aqui do medo de perder o vínculo, mas do uso inconsciente da situação de abuso e humilhação como um castigo para as travessuras de infância. É claro que o sujeito não tem consciência disso, mas, com base na escuta de seu discurso durante a terapia, podemos perceber claramente que a pessoa se autodespreza colocando-se submissa aos caprichos do outro como uma forma de se punir pelas culpas do passado. É como se a pessoa vivesse guiada pelo seguinte pensamento: “Por tudo o que já fiz, não mereço respeito e consideração. Portanto, preciso suportar toda essa humilhação”.
Seja por medo de perder o amor do outro seja como uma forma de autopunição, o autodesprezo crônico precisa ser tratado. Não é justo que pessoas passem a vida inteira se deixando abusar e humilhar por conta de um medo imaginário de não conseguirem viver sem o outro ou por acreditarem na fantasia de que merecem uma punição eterna por peripécias inofensivas.
Dr. Lucas Nápoli – Psicólogo/Psicanalista; Doutor em Psicologia Clínica (PUC-RJ); Mestre em Saúde Coletiva (UFRJ); Psicólogo clínico em consultório particular; Psicólogo da UFJF-GV; Professor do Curso de Psicologia da Faculdade Pitágoras GV e autor dos livros “A Doença como Manifestação da Vida” (Appris, 2013), “O que um Psicanalista Faz?” (Ebook, 2020) e “Psicanálise em Humanês: 16 Conceitos Psicanalíticos Cruciais Explicados de Maneira Fácil, Clara e Didática” (Ebook, 2020).
As opiniões emitidas nos artigos assinados são de inteira responsabilidade de seus autores por não representarem necessariamente a opinião do jornal