Recentemente, no Brasil, a palavra “recalque” passou a fazer parte do vocabulário comum. Nos últimos anos vemos o termo aparecer em letras de funk e no léxico cotidiano de muitos jovens brasileiros, geralmente, com uma conotação associada à inveja. Uma pessoa recalcada seria aquela que se incomoda com o sucesso alheio, que se ressente por não ter conseguido alcançar as vitórias que o outro obteve. Em suma, recalque é tomado no linguajar popular como sinônimo de ressentimento.
Como acontece com inúmeras outras expressões cotidianas, a palavra recalque é utilizada pela maioria das pessoas nesse sentido popular sem qualquer consciência da proveniência do termo que, nesse caso, está ligado ao campo da Psicanálise. O curioso é que o sentido popular atribuído a essa expressão está de fato relacionado ao significado preciso que o termo possui na teoria psicanalítica. Senão, vejamos:
Quando se diz no contexto popular que uma pessoa está sofrendo de recalque em relação a outra, o que está implícito nessa formulação é a ideia de que o indivíduo recalcado gostaria de ser como o outro ou de possuir as coisas que o outro conseguiu. No entanto, o que nos autoriza a qualificar tal cidadão como vítima do recalque é justamente o fato de que ele não admite nutrir em si o desejo de ser como o outro ou de ter o que o outro tem. Em outras palavras, o recalcado é aquele que mascara sua admiração pelo coleguinha com o incômodo ou a raiva que sente em relação a ele.
Curiosamente, a ocultação de desejos é justamente uma das facetas com que o recalque se apresenta em sua conceituação científica no campo da Psicanálise. De fato, Freud descobriu o recalque ao investigar o que estaria por trás da formação dos sintomas de uma patologia muito frequente no fim do século XIX, a histeria. Pessoas que padeciam dessa doença experimentavam problemas físicos os mais diversos, que, todavia, não possuíam uma base orgânica. Assim, quando um indivíduo histérico comparecia ao médico queixando-se, por exemplo, de não estar conseguindo enxergar, o profissional fazia os exames físicos e constatava que o paciente “não tinha nada”, ou seja, apesar de não conseguir ver, seus olhos estavam fisicamente intactos.
Ao investigar clinicamente por que fenômenos dessa natureza aconteciam, Freud observou que os pacientes que atendia não conseguiam se lembrar das situações nas quais aqueles sintomas haviam surgido. A explicação proposta pelo pai da Psicanálise foi a de que tais pacientes, na verdade, haviam deliberadamente expulsado de suas consciências as memórias associadas aos sintomas. E por que faziam isso? Porque tais lembranças diziam respeito justamente a desejos e impulsos que tais indivíduos não suportavam admitir que algum dia tiveram. A esse mecanismo de expulsão de ideias da consciência, Freud deu o nome de recalque.
Portanto, para a Psicanálise, recalque é um mecanismo mental acionado automática e inconscientemente quando não queremos reconhecer a existência de desejos que são incompatíveis com a imagem que temos de nós mesmos. Angustiados, expulsamos as ideias associados a esses desejos da consciência e fingimos para nós mesmos que elas nunca existiram. De fato, como a clínica psicanalítica comprova, nossa tendência ao autoengano é tão grande que nós, verdadeiramente, acreditamos que as ideias recalcadas nunca passaram pela nossa cabeça.
De forma similar, as pessoas às quais popularmente damos a alcunha de recalcadas são precisamente aquelas capazes de negar até a morte a admiração e a inveja que sentem pelo coleguinha, mas o criticam e se incomodam excessivamente com o comportamento dele. A crítica, o incômodo e a raiva gratuita que o recalcado expressa pelo outro compõem a máscara que ele utiliza para não se ver compelido a admitir a inveja lancinante que consome seu espírito. Como enunciam com propriedade as letras de funk que tratam do tema, o recalcado é traído pelo seu desejo de ser como o outro pela quantidade de tempo e energia que dedica a ele: fala dele, pensa nele, 24 horas por dia…
Isso acontece porque aquilo que recalcamos, ou seja, aquilo que expulsamos de nossa consciência e fingimos que nunca existiu, na verdade não desaparece, mas vai para aquela região da mente que Freud denominou de “Inconsciente”. Lá, o conteúdo recalcado ganha força, pois já não é mais alvo dos processos racionais que dominam o funcionamento da consciência. Nesse sentido, quanto mais recalcamos um desejo, mais ele se consolida dentro de nós, pois passa a se fazer presente em nosso dia-a-dia à revelia da consciência. É por isso que o recalcado, no sentido popular, não consegue deixar de pensar naquele que é o “objeto” do seu ressentimento. Inconscientemente, o desejo de ser como o outro e de querer as coisas que o outro tem acaba sendo mais forte que o próprio sujeito, ainda que o recalcado não seja capaz de reconhecer sequer a existência desse desejo.
Vemos, portanto, que o recalque popular não está tão distante do recalque tal como entendido pela teoria psicanalítica. Em ambas as significações, trata-se sempre de um processo marcado pelo autoengano.
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Dr. Lucas Nápoli – Psicólogo/Psicanalista; Doutor em Psicologia Clínica (PUC-RJ); Mestre em Saúde Coletiva (UFRJ); Psicólogo clínico em consultório particular; Psicólogo da UFJF-GV; Professor e Coordenador do Curso de Psicologia da Faculdade Pitágoras GV e autor do livro “A Doença como Manifestação da Vida” (Appris, 2013).