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Tecnoburocracia

por Marcos Santiago

Em 2013 correu nos cinamas (há! os cinemas!) o filme Elysium. Uma produção que se pretende futurista, mas que pedagogicamente ilustra uma realidade bem atual. Amplamente, apresenta-se ali, uma sociedade em que os mais ricos vivem à bordo de  uma estação espacial, armada até os dentes e repleta de recursos paradisíacos, sobretudo de saúde e bem-estar, enquanto o resto da população mora em uma Terra arruinada, produzindo e sobrevivendo para a manutenção de Elysium. As máquinas e tecnologias são parte da vida, do transporte à segurança. Vigilantes robôs controlam a massa insatisfeita e doente. O serviço  público que resta é executado por atendentes eletrônicos de conduta automatizada. As queixas e demandas são respondidas por uma gravação de voz, incapaz de decifrar a necessidade humana. O ator principal ressente das consequências mortíferas de um acidente de trabalho, enquanto se junta a uma menina doente, em busca de um tratamento de saúde que existe na estação espacial, inacessível aos que padecem na Terra. Apesar da proposta retratar uma visão de futuro, certo é que não é, legitimamente, uma obra imaginária. São questões presentes em nosso meio. Também ali, vemos a importância da tecnologia, indispensável e diria, inevitável, para o progresso da sociedade. O que a torna cronicamente débil é o acesso altamente desigual. Instituições públicas e privadas tem implementado soluções inovadoras para o atendimento ao público, sob o mote da escassez de recursos e do quadro enxuto de mão de obra, ou, simplesmente, em face da premente necessidade de ampliar receitas e reduzir despesas. Se no ramo privado o recurso tecnológico é uma atitude que visa ampliar vendas e angariar clientes com interfaces práticas, alternativas e atrativas, no setor público o emprego da tecnologia parece se vincular mais ao distanciamento do estado para com a população demandante, que com a democratização do acesso a bens e serviços. Democratização seria se o recurso fosse mais um dentre os recursos, todavia, o acesso a serviços públicos tem se distanciado da população comum, prestando-se, forçosamente, via aplicativos e aparelhos eletrônicos, procedimentos virtuais distantes da realidade daqueles que a utilizam. Faltou entender minimamente que o fato de se possuir um fogão em casa não faz de ninguém um bom cozinheiro.  A posse de um aparelho telefônico, eventualmente, um computador, não assegura que esse ou aquele tenha domínio sobre sua operacionalização, incluindo a aquisição, domesticação de aplicativos, acesso remoto, interface amistosa e compreensível ao público em geral, cadastro, resgate e manuseio de senha e login. Serviços públicos tem investido desvairadamente em um atendimento virtual. Em se tratando de filmes, vale assistir “Eu, Daniel Blake”, para se apropriar de um bom filme sobre o tema. Abrangem áreas essenciais para a vida, para a vida em sociedade, das quais dependem um público massivo, desprovidos, em grande monta, do ensino médio, de recursos pessoais e de uma cultura tecnológica. Por vezes, dependentes da intervenção de terceiros ou estranhos para usufruir de um direito elementar, o de petição, pedir e receber resposta do ente público. São, em suma, direitos com características alimentares, denegados ou retardados não em face do direito em si, mas em virtude dos tropeços e desencontros para com o rito processual. O público em geral não está apto a manipular dados eletrônicos, juntar documentos em um ou outro formato, prestar esclarecimentos eletronicamente, acompanhar prazos e atender requisitos de um processo eletrônico. Então, acumula danos! Outros tantos o fazem acidentalmente, não havendo a quem recorrer, dado o custo ou o desamparo. Preterir um direito, um serviço, a um público de condições escassas é estabelecer Elysium em uma Terra arrasada. Se a tecnologia é necessária, há que se cuidar, urgentemente, de que a tão debochada burocracia (seu excesso) não nos seja vendida como tecnoburocracia. A tragédia de Elysium foi seu projeto para fastar o público, distanciar o atendimento, robotizar o serviço, desumanizar o tratamento, cortar custeio, tecnoburocratizar o acesso, desresponsabilizar-se para com a massa populacional hipossuficiente, violada e violentada. O canal virtual deve ser mais um recurso disponível, mas não o único. É vital resguardar o direito ao acesso. Democratizar não e sinônimo de robotizar, senão nas apocalípticas obras de ficção.

As opiniões emitidas nos artigos assinados são de inteira responsabilidade de seus autores por não representarem necessariamente a opinião do jornal

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