Dr. Lucas Nápoli (*)
Uma das principais descobertas feitas pelo psicanalista Sigmund Freud é a de que somos seres divididos. Uma parte de nós está sob a influência de impulsos de natureza sexual e agressiva (id). A outra (ego) é governada pelas restrições impostas pela realidade, pela civilização e pelas relações com as outras pessoas. Com base em sua experiência clínica, Freud verificou que frequentemente essas duas partes entram em conflito, pois a satisfação de uma delas não raro é incompatível com a realização dos desejos da outra. Por exemplo, uma jovem pode se sentir atraída pelo namorado da irmã, desejar ficar com ele e, ao mesmo tempo, repudiar essa vontade por não querer magoar a irmã e por considerar que ficar com o cunhado seria uma conduta moralmente inadequada. Temos aqui, portanto, a presença de um conflito entre uma parte da jovem que quer uma coisa (id) e outra parte que deseja um estado incompatível com a primeira (ego).
Freud descobriu que muitas pessoas resolvem conflitos como esse de forma natural simplesmente renunciando ao desejo de uma das partes (geralmente da parte ligada aos impulsos sexuais e agressivos). Contudo, existem indivíduos que não conseguem executar esse procedimento e acabam fazendo do conflito o gatilho para um processo de adoecimento psíquico. Isso acontece com essas pessoas porque nelas as duas partes empregam força excessiva no conflito, ou seja, por um lado o sujeito quer muito satisfazer seus impulsos e, por outro, também quer muito estar em paz com sua consciência moral. O resultado é que nenhuma das partes está disposta a abrir mão de sua satisfação, fazendo com que o conflito permaneça.
O desfecho desses casos, como Freud bem observou, é o adoecimento psíquico. Com efeito, para não ter que renunciar à satisfação do id (a parte ligada aos impulsos), o sujeito retira seus desejos da consciência e conserva-os na dimensão inconsciente da mente. Dessa forma, a pessoa consegue satisfazer as duas partes: ao mandar os desejos do id para o Inconsciente, ela engana o seu ego (a parte ligada à realidade e à moralidade), fazendo-o acreditar que venceu a batalha. Por outro lado, no Inconsciente, os desejos do id se veem livres para buscar satisfação por meios discretos e indiretos. Tais meios são justamente os sintomas neuróticos, que inconscientemente proporcionam satisfação para os impulsos do id e conscientemente não são condenados pelo ego.
A Psicanálise foi um método terapêutico criado por Freud exatamente para pessoas que optam por esse caminho da doença. Por meio do método psicanalítico, o ego do sujeito é convocado a reavaliar seus parâmetros e critérios morais e a tornar-se menos rígido na avaliação dos desejos que vêm do id. Assim, esses desejos que foram obrigados a buscar satisfação inconscientemente pela via dos sintomas, podem ser novamente reconhecidos na consciência, dispensando a necessidade da doença.
Após esse reconhecimento, o sujeito precisará escolher o que fará com tais desejos: ele pode (1) rejeitá-los conscientemente, isto é, renunciar à satisfação deles (que, como eu disse acima, é a saída natural empregada pela maioria das pessoas); (2) aceitá-los e buscar satisfação para eles (a reavaliação de critérios feita pelo ego talvez permita isso); e (3) buscar satisfação para eles por meios indiretos, mas não sintomáticos (o que Freud chamava de sublimação).
A sublimação permite que impulsos que originalmente são de natureza sexual ou agressiva possam ser descarregados por meios que não são propriamente sexuais ou agressivos. Freud descobriu que nossos impulsos são tão intensos e, ao mesmo tempo, tão plásticos, que eles podem ser satisfeitos de diversas formas. É por isso que, apesar de todos nós sermos diariamente impelidos ao gozo sexual e à agressividade, não passamos o dia inteiro transando e batendo uns nos outros. Se não tivéssemos uma sociedade, uma civilização e, consequentemente, um ego, provavelmente era isso que estaríamos fazendo 24 horas por dia: sexo e violência.
A existência das restrições e limites impostos pela realidade, pela sociedade, pela civilização é o que nos impede de viver satisfazendo nossos impulsos de forma direta o tempo todo. É claro que transamos e, eventualmente, nos agredimos (verbal e fisicamente), mas isso não é o suficiente para satisfazer os impulsos do id; eles pedem muito mais. É aí que entra a sublimação: esse mecanismo permite que a gente descarregue os impulsos do id por meio da literatura, dos videogames, das artes marciais, do esporte etc. Todas essas atividades não são a expressão direta da sexualidade ou da agressividade, mas podem ser meios simbólicos para a satisfação dessas inclinações.
Ao escrever um romance, por exemplo, a jovem apaixonada pelo cunhado citada no início deste artigo, pode dar vazão a seus desejos sem entrar em conflito com seu ego. Da mesma forma, aquele empresário tomado de raiva por seu sócio pode muito bem descarregar seus impulsos agressivos fazendo aulas de jiu-jitsu. A sublimação, portanto, representa o uso dos caminhos oferecidos pela civilização para a satisfação daqueles mesmos impulsos que ela busca restringir.
(*) Dr. Lucas Nápoli – Psicólogo/Psicanalista; Doutor em Psicologia Clínica (PUC-RJ); Mestre em Saúde Coletiva (UFRJ); Psicólogoclínico em consultório particular; Psicólogo da UFJF-GV; Professor do Curso de Psicologia da Faculdade Pitágoras GV e autor dos livros “A Doença como Manifestação da Vida” (Appris, 2013), “O que um Psicanalista Faz?” (Ebook, 2020) e “Psicanálise em Humanês: 16 Conceitos Psicanalíticos Cruciais Explicados de Maneira Fácil, Clara e Didática” (Ebook, 2020).
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