
Alícia era uma jovem universitária graciosa, dotada de extraordinária beleza e inteligência acima da média das pessoas de sua faixa etária. Por ter facilidade para aprender e sempre se esforçado muito na escola, a jovem sequer precisou fazer cursinho pré-vestibular para conseguir obter uma nota alta no Enem, suficiente para que ela ingressasse no curso de Medicina de uma renomada universidade pública. Para quem não a conhecia, Alícia parecia não ter motivo algum para ser infeliz, afinal possuía todos os atributos invejados por nove entre dez garotas de sua idade. Todavia, apesar de todas as conquistas acadêmicas e da deslumbrante beleza que a tornava alvo do olhar embevecido de todos os rapazes da universidade, Alícia vivia há anos um inferno interior.
Com efeito, a jovem passava o tempo inteiro preocupada em agradar as outras pessoas, mesmo aquelas com as quais ela sequer possuía uma relação próxima. Da atendente da farmácia à sua melhor amiga, todas as pessoas se convertiam para Alícia em nobres senhores a serem servidos pela jovem. Ela simplesmente não conseguia dizer ou agir de tal maneira que o resultado fosse a frustração das expectativas de outra pessoa. Parecia tomada pelo dever diabólico de sempre, em toda e qualquer circunstância, atender às demandas de outrem. A única estratégia que Alícia conseguiu encontrar para fugir dessa insólita obrigação de sempre agradar era evitar o contato com as pessoas. Por isso, a moça foi se tornando cada vez mais reclusa, evitando todas as interações que não fossem estritamente necessárias para a realização de seus objetivos acadêmicos e profissionais. Já que ela não conseguia deixar de ter senhores, era melhor que esses fossem poucos.
A história de Alícia se assemelha à de alguém que você conhece ou à sua própria história? Muitas pessoas sofrem com condições emocionais parecidas com as vivenciadas por essa pobre universitária. São indivíduos que sofrem muito por não conseguirem deixar de atender às demandas e expectativas dos outros. O senso comum até já criou uma etiqueta para nomeá-los: são os bonzinhos, aqueles que estão sempre disponíveis, sempre perdoam com facilidade, são sempre prestativos, não são capazes de fazer mal a uma mosca. Enfim, são pessoas tão fáceis de lidar que às vezes nem se nota a sua presença…
O desejo de agradar os outros é uma característica natural da nossa espécie. A imensa maioria das pessoas nasce equipada pela natureza com uma tendência a buscar a aprovação dos outros. Essa habilidade foi de especial serventia quando nossa espécie apareceu no planeta, há milhares de anos, e vivíamos em tribos. Naquele contexto, em vez de lutarmos por empregos ou vagas em universidades, nossa maior conquista era simplesmente a sobrevivência. E agradar o membro da tribo vizinha que você acabou de encontrar no meio da floresta fazia parte da arte de sobreviver. Afinal de contas, não sabendo o que aquele semelhante poderia ser capaz de fazer, o mais prudente naquele momento era colocar-se a serviço dele, mostrando-se como uma pessoa benévola e pacífica. Em outras palavras, ser bonzinho era adaptativo.
Portanto, a tendência para agradar é algo que está no nosso DNA e contribuiu para que sobrevivêssemos e chegássemos até aqui. O problema é que no contexto em que vivemos atualmente, viver o tempo todo agradando os outros acaba sendo mais prejudicial do que útil. Num mundo em que a sobrevivência não é mais uma conquista difícil, outras tarefas se apresentam e a disposição de sempre agradar pode acabar comprometendo a conquista dos nossos objetivos. De fato, quem vive preso a essa tendência renuncia ao próprio tempo, aos próprios compromissos, às próprias metas, para realizar e satisfazer os objetivos de outras pessoas. E o pior é que não se trata de generosidade: quem vive sempre tentando agradar os outros não possui a envergadura moral de uma Madre Teresa de Calcutá. Jamais! O bonzinho não gosta de ser tal como é. Ele se ressente por não conseguir confrontar o outro e frustrar as expectativas dele. O bonzinho sonha com o dia em que será capaz de ligar o f&%$-se para todos.
Em minha experiência clínica observo que a grande maioria das pessoas que apresenta esse padrão bonzinho de ser possui uma história marcada pela repressão da agressividade. Explico: assim como temos a tendência natural para agradar os outros, também temos uma tendência natural para confrontá-los em prol de nossos interesses. É isso o que chamamos de agressividade – que é diferente de violência e destrutividade, que fique bem claro. O bebê, por exemplo, é agressivo quando mama de forma voraz o seio materno. A criança mais velha exibe agressividade quando está jogando futebol com seus amigos e quer derrotar o time adversário. Agressividade é vida.
Pessoas que vivem para agradar o outro frequentemente tiveram sua agressividade reprimida na infância e construíram a fantasia de que não podem jamais confrontar o outro. Comumente essa repressão acontece quando um dos pais se apresenta como excessivamente agressivo e faz com que a criança (que futuramente será uma boazinha) passe a enxergar a agressividade com maus olhos, como se fosse sinônimo de violência. Além disso, a criança aprende que a única maneira de sobreviver à violência parental é adotando um comportamento dócil, passivo e submisso, ou seja, “agradador”. Assim, o sujeito é obrigado a reprimir seus impulsos agressivos naturais e cresce achando que não tem o direito de confrontar, mas tão-somente o dever de agradar.
Dr. Lucas Nápoli – Psicólogo/Psicanalista; Doutor em Psicologia Clínica (PUC-RJ); Mestre em Saúde Coletiva (UFRJ); Psicólogo clínico em consultório particular; Psicólogo da UFJF-GV; Professor e Coordenador do Curso de Psicologia da Faculdade Pitágoras GV e autor do livro “A Doença como Manifestação da Vida” (Appris, 2013).
As opiniões emitidas nos artigos assinados são de inteira responsabilidade de seus autores por não representarem necessariamente a opinião do jornal







