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Selvas do Rio Doce: desafios de construir uma ferrovia em plena selva

por Prof. Dr. Haruf Salmen Espíndola

Ceciliano Abel de Almeida (1878- 1965) foi engenheiro da Estrada de Ferro Vitória a Minas (EFVM), na fase inicial da construção, entre 1905 e 1908. Ele deixou a EFVM para trabalhar no Governo do Espírito Santo, ao ser convidado para ser o diretor de Viação e Obras e de Terras e Colonização. No ano de 1909, Ceciliano ocupou o cargo de prefeito de Vitória, nomeado pelo presidente do Espírito Santo, Jerônimo de Sousa Monteiro. Ele voltou a trabalhar na EFVM, em 1916, quando a ferrovia estava sob o comando de Percival Farquhar, pois a Itabira Iron Ore Company havia assumido o controle acionário da empresa. Ceciliano ocupou diversas funções: chefe de tráfego, superintendente e representante do presidente da obra, o engenheiro Pedro Nolasco. Seu trabalho na EFVM foi realizado até 1931.
Com a nova situação política criada pela Revolução de 1930, que colocou Getúlio Vargas no poder e nomeou interventores para os estados, ele se afastou da política, se aposentou como engenheiro e foi residir com a família no balneário Manguinhos, município de Serra. Como o valor da aposentadoria era insuficiente para manter a família, se tornou professor de física e matemática em diversos colégios. Depois do fim da ditadura Vargas, em 1945, Ceciliano retornou à vida pública, ocupando o cargo de secretário de Agricultura, Terras e Obras do governo do Espírito Santo e, entre 1947 e 1948, o cargo de prefeito de Vitória. Em 1954, recebeu convite do governador capixaba Jones dos Santos Neves para assumir o cargo de reitor da recém-criada Universidade do Espírito Santo, atual Universidade Federal do Espírito Santo.


Neste domingo vamos aproveitar o livro “O desbravamento das selvas do Rio Doce”, do engenheiro Ceciliano, para apresentar uma visão geral sobre as condições de vida e trabalho no começo do século passado. O livro publicado em 1959, pela editora José Olympio, com prefácio de Luís da Câmara Cascudo, são as memórias do tempo em que o jovem engenheiro trabalhou na construção da ferrovia. Em 1906 a obra avançava rápido rumo a Figueira (Governador Valadares), porém o trecho entre Resplendor e Derribadinha denominado de mata pestilenta era o mais temido de todos, devido a malária e febre amarela. Em Derribadinha seria construído o pontilhão sobre o rio Doce, para que o trem passasse para a margem esquerda e chegasse em Figueira.


O convidado para realizar o serviço de locação do trecho foi feito ao engenheiro Nestor Gomes, que não era mais um jovem e tinha clareza do risco de vida que iria correr junto com os trabalhadores. Logo no início os acessos de malária se tornaram frequentes. Então ele se recolhia em Figueira, onde se restabeleceu precariamente, com doses elevadas de sal de quinina. Alguns dos trabalhadores sofrendo horrores com as febres intermitentes se retiravam e eram substituídos por novos trabalhadores. Esses não demoram em ter ataques de febres, tão logo começavam a trabalhar “naquelas paragens paludosas”. A malária era tão intensa que se dizia que “as folhas das árvores também tremiam na ocasião dos terríveis acessos de sezão”.

O engenheiro Nestor Gomes completou seu trabalho de alinhamento e topografia do terreno, mesmo com as “febres sinistras” que “campeavam, imobilizavam o chefe, os ajudantes e os jornaleiros”. Finalizado o serviço no trecho de sua responsabilidade, passou o rio e “retomaram, mais uma vez, ao povoado de Figueira”. Entretanto dessa vez o engenheiro não iria mais deixar Figueira, faleceu e foi sepultado no povoado, com muitas homenagens e tristeza de seus trabalhadores. “Um de seus auxiliares, o Sr. Pedro Zamprogno, meses depois, pormenorizou-nos as intempéries que os encantonavam nas margens inóspitas dos rios, que iam encontrando, onde as cameiradas [malária] os assaltavam mortificando-os, entorpecendo-os. Todos definhavam, dia a dia, o chefe amarelava como os demais…”


Pelo relato de Ceciliano, com a informação de que o chefe amarelava, o mais provável que ele estivesse com febre amarela. O próprio autor suspeita disso. Na época já se conhecia bem a questão da febre amarela e a transmissão pelo mosquito Aedes, graças a Oswaldo Cruz e outros. A malária ainda era pouco conhecida e prevalecia a suposição de que a causa eram as áreas pantanosas e os ares apodrecidos (miasma). No caso, o relato de Ceciliano confere com documentos que encontrei no arquivo da Prefeitura de Peçanha, da época em que Figueira era distrito. Eram telegramas trocados com o Rio de Janeiro, sobre um surto de febre amarela em Figueira. Ceciliano conta em suas memórias que o médico Lobo Leal se encontrava em Figueira quando constata o surto de febre amarela, cujos casos foram confirmados pelo laboratório no Rio de Janeiro. O médico teria publicado sobre esse surto: “Ainda não se sabe como apareceu, em Figueira, o primeiro caso da terrível epidemia. Teria promanado de Teófilo Otoni, onde há meses passados grassou a infecção? Teria a sua origem silvestre, do ciclo animal de inferior-vertebrado-homem e encontrando aqui índice elevado de aedes-aegypti para a difusão? Seria devido à persistência do vírus por longo tempo em insetos e aracnídeos (carrapatos etc.?).” Ceciliano conclui que depois que teve conhecimento do trabalho publicado pelo médico Lobo Leal, supôs que o “falecido o engenheiro Nestor Gomes, como auxiliares e trabalhadores nas matas rudes do Rio Doce”, poderia ter sido de febre amarela. Nessa região, na qual nenhum outro engenheiro aceitou ir trabalhar, Ceciliano aceitou a missão de realizar a obra de construção da EFVM e do pontilhão sobre o rio Doce. No próximo artigo vamos tratar disso e completar essa história sobre “O Desbravamento das Selvas do Rio Doce”, do engenheiro Ceciliano Abel de Almeida.


Professor do Curso de Direito da Univale
Professor do Programa de Mestrado em Gestão Integrada do Território – GIT
Doutor em História pela USP

As opiniões emitidas nos artigos assinados são de inteira responsabilidade de seus autores por não representarem necessariamente a opinião do jornal

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