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Rótulos

Os olhos acompanhavam o passeio despretensioso do dedo indicador pelos rótulos dos vinhos na gôndola do supermercado. Era mais do time do uísque, mas estava com tempo e se divertia vendo o nome das marcas portuguesas, que, involuntariamente, traziam um duplo sentido. Fora que o inverno tinha chegado e um vinhozinho caía bem quando esfriava. Se peneirasse algum achado com preço bom, talvez levasse uma garrafa. Até que um nome lhe saltou aos olhos; na verdade, um sobrenome.

Não era a primeira marca da bebida com sobrenome que via, mas nunca tinha se deparado com aquela. Boquiaberto, ergueu a garrafa lentamente, como um troféu. Um belo rótulo de vinho tinto português com o exato sobrenome da moça com quem ele tinha saído três ou quatro vezes nas últimas semanas – e pela qual estava completamente apaixonado. Sorriu um riso bobo, que feliz coincidência.

Comprou, claro. Não uma, mas duas unidades, as únicas ainda disponíveis naquela imensidão de bebidas repousando nas prateleiras. Imaginou jantares românticos em casa. O brilho no olhar da mulher ao ver a garrafa com o seu sobrenome sobre a mesa arrumada. Queijos fatiados. Uma boa massa, jazz baixinho na caixa de som. Meia-luz, quem sabe velas. Ouvia o tilintar dos brindes. Abraços e beijos, corpos quentes em noites frias.

Tentou marcar para a próxima sexta, disse que estava com saudades, adiantou que apresentaria uma surpresa; ela já tinha um compromisso, coisa do trabalho. Na outra semana, começavam as férias dela, uns dias fora do país. Voltou para ver a banda preferida da adolescência, em um rolê aguardadíssimo com as amigas da época. Na sequência, sentiu-se mal, uma virose, provável. Depois, precisava descansar.

Já se passava sei lá quanto tempo desde que as garrafas foram morar na adega improvisada no canto da despensa e as perspectivas de conhecerem a moça com o sobrenome igual ao delas beiravam a zero. Não por falta de tentativa, o rapaz era realmente bem-intencionado. O fluxo de mensagens tornou-se cada vez mais raro, até a quase extinção.

Embora estivesse em vias de desistir de vez, ainda nutria um filete de esperança quando tomou o golpe fatal, de forma cruel: foto postada na rede social de madrugada. Duas taças cheias ao lado de um vinho de marca qualquer, com um coraçãozinho desenhado à mão. Doeu.

As suas garrafas agora o lembravam algo em que definitivamente ele não queria mais pensar. Não tinha o menor clima para beber sozinho. Cogitou doá-las a algum interessado, mas teria que explicar o porquê, meio vergonhoso. Jogar fora era demais; estava triste, mas também não era otário. Vinho bom não é barato.

O sobrenome não era tão raro, talvez ainda conseguisse aproveitar, com outra companhia o cenário especial que já era real na sua imaginação. Procurou alguém da “mesma família” entre os seus contatos. Achou um antigo affair que não vingou, com quem não falava há anos; uma colega de trabalho de outra unidade sem qualquer intimidade; sua dentista; a esposa de um amigo; um cara gente boa que aparecia de vez em quando no futebol. Ninguém que despertasse qualquer sentimento a mais.

Meio em dúvida se extrapolava os limites da ética e da sanidade, buscou no cadastro de clientes da empresa, sem sucesso. Chegou a questionar uma moça aparentemente interessante na academia qual sobrenome carregava, ela achou graça. Fez o mesmo com a atendente do banco, ela achou esquisito. Começava a perder o controle.

Ao mesmo tempo, um fardo e uma obsessão. Sabia que havia deixado um rótulo de vinho ganhar uma importância completamente desproporcional, mas ainda assim evitava conhecer pessoas de todas as outras árvores genealógicas do mundo. O destino quis que nunca mais topasse com alguém com aquela ascendência.
A bebida envelheceu. Em tese, isso não era um problema – pelo contrário, até a valorizava. Tornou-se o símbolo da idealização do seu próximo romance, o relacionamento perfeito, mas que nunca chegava. A frustração engarrafada.

Em uma noite de clima morno, repensou a vida. Cansou de esperar e decidiu encerrar esse devaneio sem sentido de vez. Criou coragem, resolveria sozinho. A goles largos. Seria o início do fim daquele pequeno estoque de lembranças ruins, dos dias de desesperança, e o seu retorno à normalidade, confiava. Resgatou as duas garrafas da escuridão.

De calça jeans e chinelos, ligou qualquer música no rádio e pôs para esquentar no micro-ondas o que sobrara do almoço. Tragava um cigarro. Girou o nome da marca até fora do seu campo de visão e sacou a rolha com tensão e alívio. Encheu um copo, provou e cuspiu. O vinho estava estragado, cheiro ruim de vinagre no ar.

Mirou a outra garrafa, fechada. O rótulo parecia encará-lo.


(*) Mineiro, jornalista e mochileiro.
Já rodou meio mundo e, quando não está vivendo histórias por aí, está contando alguma. Ou imaginando, pelo menos. É um fã da arte de contar histórias: as dele, as dos amigos e as que nem aconteceram, mas poderiam existir.

Acredita no poder que as palavras têm de fazer rir, emocionar e refletir; de arrancar sorrisos, gargalhadas e lágrimas; e de dar vida, outra vez, às melhores memórias. É autor do livro de crônicas “Isso que eu falei” e publica textos no Instagram no @isso.que.eu.falei.

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