por Bob Villela (*)
Tudo que sentimos e presenciamos são cortes e recortes. Sejam eles definidos por nós em um processo de captação e edição ininterruptas, seja por meio dos estímulos e dos ruídos com os quais convivemos. “A memória é uma ilha de edição”, conforme o poeta Waly Salomão eternizou(-se). Essa enxurrada de informação se mistura e promove, diariamente, uma suposta euforia em parte dos editores-cidadãos. Outros conformam-se com a enchente rotineira a afogar discernimentos e disposições ao fim do dia.
Por falar em enchente, a chuva que caiu em Valadares na última segunda-feira revela, de forma instantânea e colorida, as cenas de um contexto de emergência climática e despreparo das cidades para lidar com aquilo que já deixou, faz tempo, de ser imprevisto. Ora, se todo ano há eventos desse tipo no período chuvoso, haveria de ser possível preparar São Paulo, BH, Valadares, o país e o mundo para esses momentos. Não é o que parece acontecer. O aparato do poder público mostra-se ineficaz em quase todo canto. Some-se a isto a atitude contraproducente de boa (má!) parte da população, alimentada por uma polarização de sofá e que alimenta as vias públicas com lixo. Um oceano de ignorância difícil de atravessar.
O mar, por sinal, não está para peixes e nem para sereias. Tá ruim até para as princesas. Em um acontecimento que se tornou uma tempestade dura de enfrentar, Kate Middleton foi “flagrada” com uma imagem cravejada de alterações. Para celebrar o Dia das Mães no Reino Unido, ela postou uma foto em família, mas com alguns “retoques”. O problema é que as mexidas tiraram muita coisa do lugar (mãos, zíper de roupa etc.), e uma foto aparentemente banal tornou-se um escândalo global. Os súditos não gostaram. Tampouco os “súbitos” — toda essa massa ansiosa e imediatista que parece predominar na internet.
Fato é que, enquanto tantas realezas tentam driblar a realidade, a gente se diverte e julga as pessoas como se as nossas biografias não corressem qualquer risco de alagamento. Com ideias que não correspondem aos fatos, participamos de linchamentos e bullying, seja como espectadores, seja como atores do espetáculo. Depois de afogar as mágoas em dopamina, fazemos aquela foto para os stories na beira da piscina (que está cheia de ratos). Sim, Cazuza, o tempo não para. E você revelou seu instante e profetizou outros tantos.
Nem tudo é negativo com a passagem do tempo, claro. Há muitas vitórias que só se consolidam quando o tema fica em longa exposição à luz. No último domingo, por exemplo, o mundo do futebol ficou maior graças a um importante registro. O técnico Cuca, durante entrevista coletiva após o jogo em que o time que ele treina aplicou um sonoro 6×0 no adversário, pediu a palavra e leu uma carta na qual admitiu que errou durante todo o tempo ao tratar do caso de abuso sexual em que esteve envolvido, ocorrido em 1987, na Suíça. Foi histórico!
Não se trata, absolutamente, de transformar Cuca em herói. Mas, sim, se reconhecer que ele avançou. E por ser quem é (um ídolo para muitos homens), ajuda o futebol a avançar na direção oposta ao machismo, à hipocrisia e à misoginia. Cuca tentou, por anos, manter a própria imagem editada ao seu modo. É do jogo. Todos fazemos isso em alguma medida. Mas ele reconheceu que, mesmo em dia com a justiça, precisava estar em dia com a consciência, com a sociedade e com o amanhã. Com as atitudes que prometeu (vamos ver quais serão), pode melhorar a estampa do esporte mais popular do planeta.
Talvez assim, Cazuza, com transparência e proatividade, o futuro não repita o passado. Quando esse dia chegar, o futebol, as cidades e parte dos usuários das redes sociais deixarão de ser um museu de grandes — e terríveis — novidades.
(*) Jornalista e publicitário. Coordenador dos cursos de Jornalismo e Publicidade e Propaganda da Univale.
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