[the_ad id="288653"]

Repensando o bem comum: a política como cuidado

FOTO: Freepik

Caros leitores, durante séculos fomos ensinados a ver a política como disputa de poder — uma guerra entre grupos, um palco de vaidades e promessas. E, de fato, muitas vezes ela se comporta assim. Mas essa visão empobrecida e pragmática, embora dominante, oculta algo essencial: a política também pode, e deve, ser um exercício de cuidado.

Na tradição ocidental, o cuidado quase sempre foi associado ao universo privado, à esfera doméstica, às relações interpessoais. Já a política foi tratada como um campo racional, público, “viril”, onde se decide o destino coletivo. Essa separação, herdada de Platão e Aristóteles, consolidou-se de tal forma que hoje parece natural. Mas será que ainda faz sentido sustentar essa dicotomia?

A filósofa Joan Tronto, em sua obra Moral Boundaries, propõe uma reviravolta: e se trouxéssemos o cuidado para o centro da política? Para ela, cuidar é uma atividade essencial à vida humana, não apenas em sentido individual, mas estrutural. Cuidar é reconhecer a interdependência entre as pessoas e agir para preservar e melhorar a vida coletiva. Sob essa perspectiva, a política deveria ser, antes de tudo, uma prática de escuta, atenção e responsabilidade — um espaço de cuidado ético e institucional.

Essa ideia ressoa com autores como Hannah Arendt, que via a política como o lugar do encontro, da pluralidade e da ação conjunta. Arendt nos lembra que o mundo comum só existe porque somos capazes de partilhar experiências, deliberar e agir juntos. Mas, para isso, é preciso reconhecer o outro como alguém que merece ser ouvido e protegido. Sem essa base de reconhecimento mútuo, a política se degrada em teatro vazio — uma disputa sem laço.

Infelizmente, o que temos visto no cotidiano institucional é o oposto. A indiferença virou política de Estado. A dor dos mais vulneráveis é ignorada. O sofrimento psíquico é tratado como fraqueza. A saúde mental dos servidores, por exemplo, é negligenciada por estruturas que cobram produtividade sem oferecer dignidade. O cuidado, nesse contexto, é tratado como luxo ou “mimimi”. Mas cuidado não é capricho — é princípio civilizatório. Um Estado que não cuida, adoece. Um sistema que não ouve, apodrece. Um governo que trata pessoas como números logo começa a perder sua legitimidade.

Em tempos de incerteza, violência simbólica e esvaziamento democrático, talvez repensar a política como cuidado seja nosso maior desafio ético. Cuidar, aqui, não é paternalismo nem caridade: é responsabilidade ativa. É construir condições para que todos possam viver com dignidade. É entender que o bem comum não é um conceito abstrato, mas uma prática cotidiana feita de pequenas garantias, escutas verdadeiras e compromissos firmes.

Ao resgatar o cuidado como eixo da política, reabrimos uma fresta de esperança. Uma política que cuida é aquela que não abandona, não silencia, não adoece. É aquela que se importa. E se, em vez de perguntar “quem manda?”, voltássemos a perguntar: “quem cuida?”


(*) Thales Aguiar | Jornalista e escritor | Especialista em Ciência Política

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

[the_ad_placement id="home-abaixo-da-linha-2"]

LEIA TAMBÉM

Brincar: O primeiro passo para ser no mundo

🔊 Clique e ouça a notícia GOVERNADOR VALADARES – Em meio às pressas do dia a dia, muitas vezes esquecemos de olhar para aquilo que realmente sustenta a infância: o

Esquina de Boa Noite com Bom Dia

🔊 Clique e ouça a notícia GOVERNADOR VALADARES – Domingo, dia 30 de outubro de 2022. O jornalista William Bonner está em estúdio à frente da cobertura das apurações do

As aparências enganam

🔊 Clique e ouça a notícia GOVERNADOR VALADARES – Durante todo o meu caminho nesta terra, sempre observo os comportamentos e atitudes das pessoas ao meu redor, até mesmo daquelas

Mais conectados, porém menos humanos?

🔊 Clique e ouça a notícia GOVERNADOR VALADARES – Vivemos na era em que enviar mensagens atravessa continentes em milésimos de segundo. Podemos ver o rosto de alguém pelo celular,