Caros leitores, durante séculos fomos ensinados a ver a política como disputa de poder — uma guerra entre grupos, um palco de vaidades e promessas. E, de fato, muitas vezes ela se comporta assim. Mas essa visão empobrecida e pragmática, embora dominante, oculta algo essencial: a política também pode, e deve, ser um exercício de cuidado.
Na tradição ocidental, o cuidado quase sempre foi associado ao universo privado, à esfera doméstica, às relações interpessoais. Já a política foi tratada como um campo racional, público, “viril”, onde se decide o destino coletivo. Essa separação, herdada de Platão e Aristóteles, consolidou-se de tal forma que hoje parece natural. Mas será que ainda faz sentido sustentar essa dicotomia?
A filósofa Joan Tronto, em sua obra Moral Boundaries, propõe uma reviravolta: e se trouxéssemos o cuidado para o centro da política? Para ela, cuidar é uma atividade essencial à vida humana, não apenas em sentido individual, mas estrutural. Cuidar é reconhecer a interdependência entre as pessoas e agir para preservar e melhorar a vida coletiva. Sob essa perspectiva, a política deveria ser, antes de tudo, uma prática de escuta, atenção e responsabilidade — um espaço de cuidado ético e institucional.
Essa ideia ressoa com autores como Hannah Arendt, que via a política como o lugar do encontro, da pluralidade e da ação conjunta. Arendt nos lembra que o mundo comum só existe porque somos capazes de partilhar experiências, deliberar e agir juntos. Mas, para isso, é preciso reconhecer o outro como alguém que merece ser ouvido e protegido. Sem essa base de reconhecimento mútuo, a política se degrada em teatro vazio — uma disputa sem laço.
Infelizmente, o que temos visto no cotidiano institucional é o oposto. A indiferença virou política de Estado. A dor dos mais vulneráveis é ignorada. O sofrimento psíquico é tratado como fraqueza. A saúde mental dos servidores, por exemplo, é negligenciada por estruturas que cobram produtividade sem oferecer dignidade. O cuidado, nesse contexto, é tratado como luxo ou “mimimi”. Mas cuidado não é capricho — é princípio civilizatório. Um Estado que não cuida, adoece. Um sistema que não ouve, apodrece. Um governo que trata pessoas como números logo começa a perder sua legitimidade.
Em tempos de incerteza, violência simbólica e esvaziamento democrático, talvez repensar a política como cuidado seja nosso maior desafio ético. Cuidar, aqui, não é paternalismo nem caridade: é responsabilidade ativa. É construir condições para que todos possam viver com dignidade. É entender que o bem comum não é um conceito abstrato, mas uma prática cotidiana feita de pequenas garantias, escutas verdadeiras e compromissos firmes.
Ao resgatar o cuidado como eixo da política, reabrimos uma fresta de esperança. Uma política que cuida é aquela que não abandona, não silencia, não adoece. É aquela que se importa. E se, em vez de perguntar “quem manda?”, voltássemos a perguntar: “quem cuida?”
(*) Thales Aguiar | Jornalista e escritor | Especialista em Ciência Política
As opiniões emitidas nos artigos assinados são de inteira responsabilidade de seus autores por não representarem necessariamente a opinião do jornal.






