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Presenças Caladas e Cálice

FOTO: Divulgação

Li, recentemente, um livro do israelense Amós Oz com a editora dele, Shira Hadad (tradução de Paulo Geiger). A obra — “Do que é feita a maçã: Seis conversas sobre amor, culpa e outros prazeres” — consiste em um pingue-pongue franco e solidário entre os dois, a respeito de bastante coisa que aflige as pessoas e o planeta. O grande autor faleceu em 2018, deixou uma produção extensa e uma contribuição para aquilo que vai além da literatura — ou para o que a literatura deveria ir além.

Em algum momento da trocação entre eles, Amós Oz manda essa reflexão: 

“Há tempos nos quais, pelo menos em alguns lugares, um poeta é capaz de ser de repente um cego que mostra o caminho, pois ele é especialista em escuridão. Mas em situações normais, quando há luz na rua, e há táxis e ônibus, e isso e aquilo, quem precisa de um cego para lhe mostrar o caminho?”

Eu, que sou poeta quando posso, fiquei pensando nos poetas de quem tanto gosto. Arnaldo Antunes, Caetano Veloso, Ferreira Gullar, Paulo Leminski… Tantos! (Inclusive aqueles que fazem poesia de outras maneiras.) Daí, procurei destilar a mesma franqueza dos autores do livro e me perguntei: Qual é o verdadeiro lugar desses caras na atualidade? Qual é a diferença que conseguem fazer — em que pese toda a genialidade — na sociedade da performance? E se precisamos nos perguntar sobre os caminhos que eles podem (podem?) mostrar, o que dizer de nós?

Na verdade (ao menos na minha verdade), o poeta, tal qual o professor — que sou em tempo integral —, parece viver o paradoxo da presença essencial e calada. O impacto é imenso, porém discreto. A diferença que fazem no mundo é gigante, mas pouca gente tem notado. E não é difícil entender a razão. É porque o que a sociedade costuma valorizar — e que hoje talvez esteja em índices estratosféricos — é o sucesso, o poder, a inovação, a elevação do homem a algo mítico, inalcançável. Geralmente, não é disso que tratam os poetas e os professores. Mas sem eles os bem-sucedidos estariam nas trevas.

E se a educação e a poesia são a indispensável água de beber, a fonte límpida e pura a nutrir avanços — muitos dos quais, questionáveis —, “a política e as comunicações estão se tornando ramos da indústria do entretenimento. Os problemas parecem ser gags, e as soluções, mensagens de SMS, e a vida, um truque”. Foi Amós Oz que disse. E, sim, ele já estava certo há alguns anos (o livro é póstumo, lançado em 2019), assim como tanta gente da filosofia, da sociologia e da comunicação têm observado isso há tempos. “Estou falando de uma metódica infantilização da humanidade”, afirma o autor.

É muito impressionante a dinâmica de uma sociedade que promove a emancipação de crianças, aceita a doutrinação de adultos e faz vista grossa para a indiferença a idosos. Talvez, inclusive, assim como os professores e os poetas, a terceira idade esteja aí para completar a trindade pacata que muda os rumos da história mesmo estando nos bastidores. É só ver os números oficiais dando conta de que são os idosos que seguram a peteca em milhões de lares brasileiros.

Claro que outros idosos tiveram muito mais sorte. Gilberto Gil e Chico Buarque, por exemplo, atingiram o patamar de lendas vivas muito antes da idade mais avançada. Hoje, gozam de uma vida bastante confortável, fruto de um trabalho criativo incansável, além de competência e ousadia de sobra. E mesmo sendo daquele grupo de poetas que, como disse Amós Oz, talvez soem desnecessários para tantos, seguem apontando caminhos.

Por sinal, a música “Cálice”, hino sagrado composto por eles nos anos 1970, é a pedra no meio do caminho de uma artista sob suspeita de plágio — logo devem me acusar de plagiar Drummond. Trata-se da artista argentina Paz Lenchantin, que acaba de lançar a canção “Hang Tough”. Não sou perito, mas a melodia soa idêntica. “Talvez o mundo não seja pequeno”, é assim um dos versos da composição de Chico e Gil. Em alguns casos, sim, é bem minúsculo. Mas tomara que seja grande o suficiente para fazer justiça com tanta coisa que anda calada, desgastada e afastada da razão. E isso quem disse não foi Amós. Mas eu amei.


(*) Jornalista e publicitário.
Professor na Univale e poeta sempre que possível.
Instagram: @bob.villela
Medium: bob-villela.medium.com

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