“É carne crua/ Sangrando/ Transbordando/ Solidão”. O trecho é da potente canção “Carne Crua”, do álbum homônimo da banda carioca Barão Vermelho, lançado em 1994, portanto, há 30 anos. Além da faixa-título, o disco traz outras músicas espetaculares, muitas das quais responsáveis por embalar dias e noites de minhas adolescência e juventude, como “Meus Bons Amigos”, “Daqui por Diante”, “Pergunte ao Tio José” e “Guarda Essa Canção”. Tudo isso na voz marcante de Roberto Frejat.
Voltando ainda mais no tempo, o álbum “Barão Vermelho 2”, o segundo do grupo, foi lançado em 1983 e, além da eterna “Pro Dia Nascer Feliz”, traz muitas outras riquezas, entre elas, a divertida “Carne de Pescoço”. “Você pintou, eu tava quieto no meu canto/
Curtiu com a minha cara, foi me provocando, é”, assim diz um trecho, referindo-se a uma pessoa que teria dado condição a outra, e esta é persistente, encardida, enjoada, difícil de largar o osso, enfim: carne de pescoço. “Pra se livrar de mim/ Vai ser fogo”, conclui.
Brasileiro adora carne — e vive no espeto. Uma das promessas de campanha do nosso atual presidente foi garantir que o povo ia poder voltar a comer aquela picanha e tomar uma cervejinha gelada. Não discordo. Se a vida é dura, pelo menos a carne macia deveria ser acessível para todos. Ainda mais no país que é um dos maiores produtores de carne bovina do planeta. Ou seja, se sobrar um dinheirinho e um tempinho — duas raridades para a maioria dos nossos mais de 200 milhões de habitantes —, deve ser grande a chance de ter churrasco.
Se o povo curte carne, os supermercados também gostam, porque está nela uma fonte de receitas e um atrativo que leva o cliente à loja. Se a alcatra está na promoção naquela rede, vamos até lá, percorremos toda a loja para chegar ao fundo, no açougue, pedimos um quilo de bifes para fazer na Air Fryer e, quando chegamos ao caixa no final da jornada, o carrinho está com um fardinho de cerveja, um refri para as crianças, um chocolate para a sogra, um chocotone para o café da manhã de domingo — já é Natal, afinal —, uma maionese para o pão de alho e assim por diante. Ou seja, vender carne é um excelente negócio para o já excelente negócio que é ter um supermercado.
O grupo francês Carrefour sabe disso. A rede, que tem no Brasil uma de suas maiores operações, sentiu na própria carne a falta que a proteína animal pode fazer ao seu organismo. Em uma decisão que deu o que falar, eles fizeram um compromisso de deixar de vender carnes de nações do Mercosul na França, alegando que os produtos não atendiam às exigências do país europeu. Segundo a imprensa, trata-se de uma reação ao acordo comercial que está em curso envolvendo o bloco da América do Sul e a União Europeia. Na verdade, o trato pode tornar mais difícil a vida de quem produz carne na França.
Só que o tempero azedou! Porque os frigoríficos brasileiros não ficaram nem um pouco satisfeitos com a postura do Carrefour e resolveram ser carne de pescoço. Daí, rolou um boicote e as lojas brasileiras da rede francesa deixaram de ser abastecidas com a nossa carne. O Carrefour emitiu um comunicado, esclareceu os fatos, pediu desculpas pela confusão e garantiu saber que “que a agropecuária brasileira fornece carne de alta qualidade e sabor”.
Voltemos no tempo de novo. Em 1992, o Barão Vermelho lançava o álbum “Supermercados da Vida”. Isso foi apenas um ano depois da criação do Mercosul, com a assinatura do Tratado de Assunção pelos governos de Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai. Sobre o bloco comercial, sei falar pouco, infelizmente. A respeito do disco, garanto que é muito bom. Entre os hits, destaco “Odeio-te, Meu Amor”, “Pedra, Flor e Espinho” e a faixa-título, que começa assim: “Nos supermercados da vida/ Se conhece o homem e seus preços/ Baratos ou caros/ Eles vendem suas almas”. A letra é forte, mas muito menos do que as tensões inflacionadas que temos consumido nas gôndolas do noticiário.
Como costumam falar algumas pessoas esclarecidas, é preciso dar nome às coisas. Estamos falando de marcas e negócios, mas, além disso e sobretudo, estamos falando de política, porque tudo passa por aí. E, claro, se é sobre política, é também sobre narrativas, hegemonia, poder e muita grana. Voltando a 1994, outro trecho de “Carne Crua” fala assim: “A felicidade não inspira confiança pra mim/ Vale a vontade de ir em frente até o fim”. “O fim está próximo”, dizem os pessimistas, os alarmistas e os oportunistas. Espero que não. Mas quando tudo acabar, que acabe com samba, churrasco e essas músicas do Barão Vermelho. Da França, aceitarei de bom grado algumas canções de Daft Punk, Edith Piaf e Phoenix.
(*) Jornalista e publicitário. Professor na Univale e poeta sempre que possível | Instagram: @bob.villela | Medium: bob-villela.medium.com
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