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Memórias e máquinas de lavar

FOTOS: Divulgação

Bob Villela (*)

O cartaz do filme não apontava mais que um elemento frugal dentro daquela trama. Não quero dizer que a peça publicitária não fosse bonita. Longe de mim fazer tal julgamento. Só que o layout simplesmente representava, para mim, que em poucos minutos se daria a exibição de algo bom — mas não excelente. Repito, o problema não estava no material de divulgação, mas em mim. Porque o que eu vi foi uma aula de cinema, de sentimento, de vida — tantas vidas! Relatos de mundos e sociedades que ficaram em algum lugar entre o passado e o esquecimento. Recortes de instantes em que a genialidade parte de uma escassez bem gerida. Reafirmação de uma arte que pulsa a magia do movimento. Retratos Fantasmas, o novo filme de Kleber Mendonça Filho (nos cinemas, mas não em Valadares).

Noventa minutos é o tempo que duram as partidas de futebol. Muitas das quais com pouca ou nenhuma emoção. Retratos Fantasmas tem a mesma duração, mas sem intervalos (pelo menos não no cinema). Nele, Mendonça — que já figurou nesta coluna quando falamos do seu extraordinário curta-metragem Recife Frio — joga em várias posições, sendo o diretor, o personagem e o contador de uma história muito íntima. O que ele vem nos contar tem a ver com o lar onde ele viveu por muito tempo, com salas de cinema de rua desativadas ou desaparecidas, com a emergência de igrejas e a proliferação de drogarias, com ruínas e ruídos. Tudo isso na capital de Pernambuco. E isso tem tudo a ver com a gente.

Retratos Fantasmas é uma homenagem ao cinema e uma denúncia da ignorância protagonista na gestão de cidades e da saúde da nossa gente. O longa começa a falar com o mundo a partir do apartamento da família do diretor. O imóvel — e parte da vizinhança — foram usados em várias obras dele, de diversas maneiras possíveis, com todas as nuances que o trabalho do pernambucano imprime nas telas. É impressionante a perspicácia dele para inserir o próprio contexto de vida nos roteiros de ficção. Um cachorro, uma casa ao lado infestada de cupins, uma residência de aparência amistosa, com portas de vidro e sem grades, uma rua escura do bairro. Tudo foi para seus trabalhos. E deu muito certo. No apartamento foi produzida, por exemplo, a insólita cena da mulher fazendo um uso pouco comum de uma máquina de lavar, no curta Eletrodoméstica. (Disponível no YouTube. Assista.)

Máquina de lavar lembra Brastemp, e há poucos dias ela veio com um novo posicionamento e slogan: “É outro mundo”. Em Como nossos pais, o mestre Belchior chama atenção: “O novo sempre vem”. É sobre isso que a marca trata nesta fase, trazendo para a campanha temas atuais e relevantes que estão em pauta. É uma forma clara, e legítima, de atualizar o lugar da Brastemp no cotidiano dos lares. Embora não seja um movimento exatamente original na publicidade e no marketing, não deixa de ser um bom sinal quando uma grande empresa resolve enriquecer debates fundamentais. Ademais, Belchior também afirma agora na linda música Velha roupa colorida, que “precisamos todos rejuvenescer”. As marcas, realmente, precisam. E a Brastemp não ia ficar de molho.

É interessante que Retratos Fantasmas questione um “mundo outro”, um pouco diferente deste ao qual a Brastemp se alinhou recentemente. Sem chororô ou nostalgia de homem branco de classe média, Mendonça reflete — e nos convida a refletir — sobre o que fazemos com nossas memórias, com nossas histórias e nossos… fantasmas. Na mesma Velha roupa colorida, Belchior afirma que “o passado é uma roupa que não nos serve mais”. Sim, mas talvez não seja o caso de jogar tudo fora. Se a roupa estivesse suja, bastaria colocar para lavar em uma máquina de “outro mundo”. Sairia como nova para ser apreciada por outras gerações. Acredito que o compositor concordaria comigo.

Enfim, ainda somos os mesmos, mas parece que não vivemos como nossos pais. Haja vista o sumiço dos cinemas de rua (e demais imóveis de valor histórico) e a quantidade de farmácias em Recife e em tantas cidades brasileiras. Na atual busca por dopamina, em que ser atual significa refutar o prédio, o jardim, a camisa, a banda, a série, o post da “temporada” anterior, Retratos Fantasmas nos dá, por alguns instantes, o poder de pensarmos em nossa história. Porque substituir as peças de uma cidade, tão intrinsecamente ligadas aos nossos circuitos de afetos, é algo bem mais complexo do que trocar uma máquina de lavar. Não tem comparação — como dizia a Brastemp de um mundo passado.


(*) Bob Villela
Jornalista e publicitário.
Coordenador dos cursos de Jornalismo e Publicidade e Propaganda da Univale.
Instagram: @bob.villela
Medium: bob-villela.medium.com

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