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Memento mori e carpe diem

Dr. Lucas Nápoli (*)

Reza a lenda que por volta do século XVII alguns monges católicos saudavam seus interlocutores com a expressão latina “Memento mori” que pode ser traduzida por “Lembre-se de que você vai morrer.”. Evidentemente, a intenção dos religiosos não era a de entristecer as pessoas com quem conversavam, mas tão-somente estimulá-las a refletir sobre o fato de que suas vidas um dia chegariam ao fim.

Trata-se de uma obviedade, mas da qual nos esquecemos durante a maior parte do tempo. Normalmente ninguém acorda de manhã e se lembra de que haverá um dia em que estará na sepultura. Na verdade, a gente vive como se isso nunca fosse acontecer. A imersão na chamada “correria do dia a dia” evita que a consciência da morte se presentifique em nosso espírito. Preocupados com as demandas do trabalho, a prova do dia seguinte ou o encontro com o contatinho no fim de semana, não conferimos espaço nem tempo na nossa agenda mental para nos lembrarmos de que a qualquer momento podemos não mais existir.

A consciência do nosso próprio destino fúnebre se oculta até mesmo quando vemos na internet notícias sobre a morte de pessoas conhecidas ou dos milhares de anônimos cujas vidas foram ceifadas pela gripe chinesa. Ficamos consternados e compadecidos dos familiares, mas não nos sentimos inclinados a repensar nossas vidas à luz do encontro com o desaparecimento do outro. Embora saibamos conscientemente que um dia seremos nós a figurar nos registros de falecimento, continuamos a viver como se esse dia estivesse muito distante ou jamais fosse chegar. Mesmo pessoas religiosas, que supostamente acreditam numa forma de existência pós-morte, frequentemente vivem como se jamais fossem falecer.

Embora seja natural viver sem pensar com frequência no fim da vida, creio que possa ser uma prática salutar reservar (sim, reservar!) periodicamente momentos para simplesmente refletirmos sobre o fato de que a qualquer hora a morte pode bater à nossa porta. Digo isso pela simples razão de que a percepção consciente de que haverá um fim opera um reenquadramento do modo como temos vivido. De fato, como sei que este texto não pode ultrapassar o limite de duas páginas, esforço-me para utilizar da forma mais otimizada e eficiente possível o espaço que possuo, evitando me delongar em pontos que não são essenciais para o argumento que estou demonstrando. Por outro lado, se o jornal não me impusesse tal limite, é bem provável que eu me perdesse em longas e irrelevantes digressões, ciente de que poderia a qualquer momento retornar ao argumento central. Esta seria a vida se não estivéssemos fadados à morte: um longo e entediante texto, cheio de comentários inúteis e divagações insignificantes.

Agora é que vem “o pulo do gato”: talvez a nossa vida hoje seja justamente esse texto enfadonho! E isso não porque sejamos imortais, mas porque não PENSAMOS sobre o fato de que vamos morrer! Veja: o que aconteceria se eu eventualmente ignorasse o fato de que meu texto precisa estar limitado a duas páginas e resolvesse escrever um artigo sem levar em conta tal baliza? Ora, talvez eu escrevesse um livreto de 30 páginas, mas a editoria do jornal publicaria apenas as duas primeiras. E pode ser que nessas duas primeiras páginas eu sequer tivesse mencionado o argumento principal do texto. Resultado: os elementos essenciais do meu artigo não seriam publicados. Por quê? Porque eu não levei em conta o limite que me havia sido fixado.

É exatamente isso o que pode acontecer conosco quando não nos lembramos periodicamente da morte. Inconscientemente acreditamos que o futuro necessariamente existirá e que, portanto, podemos adiar a realização de projetos que consideramos essenciais para nossas vidas. “Vai dar tempo”, dizemos para nós mesmos crendo na ilusão de que somos invulneráveis a qualquer acidente.

É óbvio que nos tornaríamos autodestrutivos ou paralisados se não trabalhássemos com o pressuposto de que o futuro é provável. Aqueles que se entregam ao gozo excessivo com os prazeres da existência sob a alegação de que “só se vive uma vez” estão, na verdade, utilizando uma defesa maníaca para se protegerem do desespero que experimentam diante da consciência da morte. Aflitos com a certeza de que um dia não mais existirão, eles se apegam à dimensão estética da vida como cães que lambem o pote da ração que acabaram de comer.

Essa não é a maneira mais saudável de lidar com a consciência da morte. A reflexão sobre o fato de que a vida terminará deve servir como como um estímulo constante para que saibamos distinguir o que é essencial e o que é acessório, o que é de fato importante e o que é dispensável. É comum, por exemplo, nos dedicarmos excessivamente ao trabalho e negligenciarmos nossos relacionamentos com base em pretextos como “estou construindo minha carreira” ou “trabalho tanto assim para dar uma vida melhor para meus filhos no futuro”. A pergunta que a percepção consciente da morte deve nos estimular a fazer é: “E se não houver futuro?”.

Talvez você esteja planejando escrever um texto de 50 páginas ignorando o fato de que o destino só lhe reservou duas… Não seria mais inteligente aproveitar cada linha desse texto para apresentar o argumento essencial ao invés de se perder em prolegômenos desnecessários? Como diz o poeta romano Horácio, “carpe diem quam minimum credula postero” (“aproveite o dia e confia o mínimo possível no amanhã”).


(*) Dr. Lucas Nápoli – Psicólogo/Psicanalista; Doutor em Psicologia Clínica (PUC-RJ); Mestre em Saúde Coletiva (UFRJ); Psicólogo clínico em consultório particular; Psicólogo da UFJF-GV; Professor do Curso de Psicologia da Faculdade Pitágoras GV e autor dos livros “A Doença como Manifestação da Vida” (Appris, 2013), “O que um Psicanalista Faz?” (Ebook, 2020) e “Psicanálise em Humanês: 16 Conceitos Psicanalíticos Cruciais Explicados de Maneira Fácil, Clara e Didática” (Ebook, 2020).

As opiniões emitidas nos artigos assinados são de inteira responsabilidade de seus autores por não representarem necessariamente a opinião do jornal

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