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Lições de “War” e a guerra civil numa cidade que já foi maravilhosa

IMAGEM ILUSTRATIVA CRIADA POR IA

Entre tabuleiros e tiroteios, o Rio de Janeiro se transforma num jogo de poder onde a vitória é medida em territórios — e as perdas, em vidas.

Enquanto preparava minha derradeira jogada — aquela que me faria vencer mais uma batalha num dos mais conhecidos jogos de tabuleiro — acabei assistindo a uma vitória improvável de um dos adversários mais subestimados da nossa turma. Éramos quatro jogadores.

Meu objetivo era conquistar a América do Sul, a Europa e mais um continente (faltavam apenas dois territórios da Oceania). Ou seja, era quase certo que, na jogada seguinte, eu seria vitorioso. Só não contava que um dos colegas tivesse como meta conquistar 24 territórios aleatórios.

A vitória abrupta do meu colega naquele jogo de War trouxe algumas lições que carrego até os dias de hoje. Mas a maior delas é a de que jamais podemos subestimar nossos oponentes — ou mesmo aqueles que estão ao nosso lado.

Enquanto os “favoritos” se enfrentavam, gastando forças e atenção em duelos previsíveis, o jogador improvável avançava pelas margens do tabuleiro, silencioso e estratégico. Quando percebemos, ele havia dominado tudo. No fundo, o “War” é mais do que um jogo: é uma metáfora sobre poder, dominação e vaidade. E, de certa forma, o que acontece hoje no Rio de Janeiro segue a mesma lógica — só que com vidas reais, sangue e um tabuleiro que há muito perdeu as cores.

Nos últimos dias, o Rio assistiu a uma das operações policiais mais letais de sua história. No Complexo do Alemão e na Penha, mais de 119 pessoas morreram, incluindo quatro policiais — dois deles do Bope.

Moradores e entidades afirmam que o número real pode ultrapassar 130 mortos, num episódio que escancarou o colapso da segurança pública e a guerra não declarada entre o Estado, as facções e as milícias.

O Comando Vermelho (CV) reafirmou seu domínio sobre boa parte das comunidades da capital fluminense, enquanto o Primeiro Comando da Capital (PCC) mantém sua força consolidada em São Paulo e expande influência por outros estados. Um levantamento do Fórum Brasileiro de Segurança Pública indica que, somente na Amazônia Legal, o CV atua em 58 municípios e o PCC em 28 — prova de que o problema já ultrapassou o Rio e se espalha pelo país. Diante deste cenário perverso, o que nos resta é tentar, minimamente, entender as engrenagens deste mecanismo e extrair lições para o nosso dia a dia. Vejamos:

1. O poder da invisibilidade

Enquanto o Estado tenta manter o controle do território, as facções e as milícias jogam com outras regras — as da invisibilidade, do tempo e da astúcia. No Rio, o invisível é o que domina. O poder se move pelos becos, pelos túneis e pelas brechas de um sistema que já se acostumou à corrupção e ao medo.

2. A arrogância dos fortes

A arrogância dos fortes também se repete: o Estado, que deveria garantir a ordem, insiste em acreditar que a força bruta basta. Mas cada ofensiva mal planejada abre espaço para novos dominadores. É o jogo que se retroalimenta — quanto mais se combate o crime sem atacar as causas, mais o crime se fortalece.

3. O tempo e o cálculo

O tráfico e as milícias aprenderam a esperar. Sabem o momento certo de se expandir, o instante de se calar, a hora de agir. O tempo é uma arma. No tabuleiro da guerra carioca, vence quem domina o compasso.

4. A distração coletiva

Enquanto a sociedade se divide em “bandido bom é bandido morto” ou “culpa do Estado”, o verdadeiro inimigo avança. As milícias, em especial, crescem na sombra dos confrontos entre polícia e tráfico — e já controlam boa parte da Zona Oeste.

Hoje, no Rio, se as forças policiais não se intimidam com as facções que dominam os morros, acabam se tornando alvo das milícias, que se espalham com o aval tácito de quem deveria combatê-las.

5. O dilema ético e cultural

E há ainda a dimensão ética e cultural. A guerra no Rio não é apenas social ou policial — é também reflexo de uma cultura de conquista e dominação que se repete desde os tempos coloniais. Territórios precisam ter donos, e cada “dono” impõe sua lei. A favela, nesse contexto, vira Estado paralelo; a avenida, um espaço de aparente normalidade.

Morei no Estado do Rio entre 2001 e 2003. E, costumeiramente, descia a serra até a “Cidade Maravilhosa” para um ou outro evento. Naquele tempo, sempre me diziam:

“É só o morro não descer pra avenida e a avenida não subir o morro.”

Nunca tive problemas diretos, mas vivia em alerta. Bastava um helicóptero rasgando o céu ou um barulho fora do lugar para que o coração acelerasse. Em muitas ocasiões, especialmente na rodoviária, olhei para o alto e pedi a proteção de Deus — e, pra não dar na pinta, tentei parecer um autêntico carioca, leve, descontraído, como se o medo não estivesse ali. Era um equilíbrio tenso: viver sobre uma linha invisível, entre a beleza do mar e a sombra do morro.

O fato é que a solução para essa guerra parece distante. A cumplicidade histórica entre parte das forças policiais e o crime organizado é um muro difícil de derrubar. Em todas as esferas de poder, há sempre o corrupto e o corruptor — um não existe sem o outro. Enquanto essa simbiose persistir, o tabuleiro continuará sendo o mesmo, apenas com novas peças.

No fim, nossa vida — e o próprio Rio — acabou se tornando um grande tabuleiro de “War”. Poder, dominação e disputas territoriais são as peças que movem o jogo. E, infelizmente, o Capitão/Coronel Nascimento só existe na ficção. Na vida real, não há heróis: apenas jogadores tentando sobreviver a uma guerra que parece não ter fim.

EDSON CALIXTO JUNIOR é escritor, teólogo e jornalista. Trabalhou no Diário do Rio Doce, Rádio Globo/CBN, Rede Novo Tempo de Comunicação, foi assessor de imprensa na Assembleia Legislativa do Paraná (2003 – 2010). Bacharel em Administração de Empresas pela FAGV, com MBA em Gestão, atualmente é servidor público federal.

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