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Homem primata

FOTO: Freepik

No dia 6 de março, em uma partida entre Palmeiras e Cerro Porteño válida pela Copa Libertadores Sub-20, alguns torcedores paraguaios fizeram a clássica imitação de macaco e dirigiram ofensas racistas ao jogador Luighi, da equipe paulista. O destaque para a palavra clássica não é em vão. Ora, embora absurdos sempre tenham feito parte deste mundo, há episódios anacrônicos com os quais não deveríamos mais conviver. Já há um escopo legal e tecnológico bastante robusto para que gestos racistas, criminosos, abjetos, covardes, deixem de fazer parte de qualquer espaço.

Entretanto, o que ocorre é o contrário. O movimento estúpido de gente rasteira torna-se recorrente, frequente, presente, replicado. Da mesma forma, segue-se toda a cantilena já bem conhecida quando casos assim ocorrem. Os clubes publicam notas de repúdio. A imprensa fica indignada. Exige-se uma “punição exemplar”. Basta! — todos dizem, com veemência. O time cujo torcedor cometeu o crime diz que o indivíduo não poderá frequentar o estádio. A responsável pela organização do torneio aplica uma multa e obriga o clube a jogar com portões fechados. Com alguma variação aqui e ali, o roteiro é este.

Passa algum tempo e a cena se repete. Volta o protocolo do parágrafo acima. Com Luighi foi um pouquinho diferente. Primeiramente, graças ao jovem jogador, que, após a partida, quente e emocionado, deu uma entrevista histórica, na qual, em vez de falar sobre o jogo, cobrou a mídia, a CBF, a Conmebol, seja lá quem for!, para que ajam com rigor. O Ministério Público Federal está investigando a CBF por omissão no caso. A presidente do Palmeiras, Leila Pereira, insatisfeita com as providências tomadas pela Conmebol, sugeriu que os clubes brasileiros deixassem a entidade e se filiassem à Concacaf — a Confederação das Associações de Futebol da América do Norte, Central e Caribe.

Organizando os fatos: no dia 6 de março o atleta Luighi é vítima de um ato criminoso. No dia 10, a presidente palmeirense, chateada — com toda razão —, levanta a hipótese de transferência dos clubes para a confederação da parte de cima do continente. Então, no último dia 17, depois do sorteio dos grupos da Libertadores e da Sul-Americana, Alejandro Domínguez, o presidente da Conmebol, foi questionado sobre a possibilidade de os brasileiros deixarem a entidade e, consequentemente, não jogarem os torneios. E ele disse que a competição sem times do Brasil seria como “Tarzan sem Chita” — referindo-se ao herói branco e à sua inseparável macaca.

Ato contínuo, o que aconteceu? Notas de repúdio, inclusive do Governo Federal. Pedido de desculpas do presidente da Conmebol. Declarações indignadas da imprensa. Claro que tudo isso é necessário. Mas o que mais? Ora, a não ser em casos de desinformação dirigida a um público com comportamento de manada, as pessoas — boas ou más — que raciocinam sabem que um discurso que não se materializa na prática torna-se inócuo. As palavras duras se desmancham justamente porque não se concretizam na realidade. Resultado: o combate converte-se em um eterno teatro, com contornos de hipocrisia. 

O filme “O Fantasma da Liberdade”, do gênio Luis Buñuel, é um dos momentos mais sublimes do cinema. Com mais de 50 anos, a obra é daquelas que seguem absolutamente atuais, destacando, com muito surrealismo (marca registrada do diretor), o funcionamento de setores da sociedade. Amigos de uma elite “sofisticada” se encontram para um jantar e, à mesa, em vez de cadeiras há vasos sanitários. Já a refeição acontece em uma cabine individual que lembra um banheiro. Um assassino em série é julgado em um tribunal e, após a condenação, sai livre e fica bem na fita. E tem muito mais neste retrato de um mundo controverso e hipócrita que Buñuel exibiu.

Pois parece que estamos em um filme desse tipo. Como se para vencer uma guerra contra o racismo bastassem notas de repúdio, pedidos de desculpas e propaganda estilo “Racismo Não”. Os clubes deveriam se retirar dos torneios. Sairiam de um campeonato e entrariam para a história. Até mesmo sob a perspectiva do marketing seria um belíssimo movimento — apesar do prejuízo financeiro. O futebol brasileiro, tão desgastado em campo e fora dele, estava na cara do gol. Poderia mostrar ao mundo que é preciso dar um passo além das palavras. Mas são muitos os compromissos com direitos de transmissão, patrocinadores, sócios e por aí vai.

Portanto, haverá episódios de racismo, notas de repúdio, imprensa indignada e pedidos de desculpas. Só não haverá avanços. Buñuel mostrou a todos nós como a sociedade e os poderosos jogam para driblar o que chamamos de realidade. Não chegamos onde chegamos necessariamente por falta de informação — ou pelo excesso delas. Estamos nessa enrascada graças à espantosa incompetência dos bons, à tresloucada ousadia dos imbecis e à irredutível inércia de quem tem poder e bom senso. Enquanto for assim, Tarzan e Chita seguirão em cartaz.


(*) Jornalista e publicitário | Professor na Univale e poeta sempre que possível | Instagram: @bob.villela | Medium: bob-villela.medium.com

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