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Foi sem querer querendo

Dr. Lucas Nápoli (*)

Outro dia o Raul, um amigo recém-separado, me disse que havia decidido tentar a sorte no Tinder, o famoso aplicativo de relacionamentos que já virou até tema de música sertaneja. Segundo ele, não suportava ficar sozinho e, como não amasse mais a ex-mulher, precisava de uma nova companhia. Pois bem, na semana seguinte me chega o Raul narrando sua peregrinação pelas dezenas de perfis que lhe foram sugeridos pelo app. Sua odisseia só teve fim quando, após obter meia dúzia de matches, finalmente conseguiu desenvolver um bom papo com uma das incautas que haviam correspondido ao seu interesse. A moça lhe pareceu encantadora. “Você acredita que ela também gosta de filme de terror de baixo orçamento? É a minha alma gêmea!”, foi a mensagem que ele me mandou no zap seguida de vários emojis de coração, dois dias depois de ter a primeira conversa com a jovem.

Talvez Luana (esse era o nome da referida donzela) fosse mesmo a alma gêmea de Raul. Isso, contudo, jamais saberemos, já que meu caro amigo colocou tudo a perder logo no primeiro encontro, ocorrido num restaurante italiano. Após fazerem um brinde com o Merlot mais caro da casa, o Raul me solta a seguinte pergunta: “Então, Luiza, já conhecia esse restaurante?” Luiza era o nome de sua ex.

Meu amigo não foi a primeira nem será a última pessoa a cometer esse tipo de equívoco, que pode ser descrito com a frase imortalizada por Chaves, o célebre personagem de Roberto Bolaños: “Foi sem querer querendo”. Todos nós estamos sujeitos a fazer atos falhos. Queremos dizer uma coisa e acaba saindo outra, como se as palavras tivessem vida própria e acabassem saindo da boca sem a nossa permissão.

Fenômenos de troca de palavras, como esse que aconteceu com Raul, e outros como esquecimentos de objetos (quem nunca esqueceu chaves, guarda-chuvas ou canetas por aí?) ou erros de digitação (não vá colocar a culpa no corretor ortográfico, hein?), pois bem, tais fenômenos revelam que nós não temos controle pleno sobre nosso comportamento voluntário.

Eventualmente, parece que entre a nossa intenção de fazer alguma coisa e a efetiva execução da ação, alguma coisa dentro de nós aparece e perturba, distorce, altera a realização planejada do ato.

Mesmo conhecendo e se divertindo com o “foi sem querer querendo” do Chaves, a maioria das pessoas não dá muita bola para os atos falhos. Muita gente considera esse tipo de erro como uma espécie de bug da nossa mente, uma simples falha do cérebro. “É o cansaço”, dizem alguns. “É porque eu estava distraído”, dizem outros.

Um médico neurologista austríaco chamado Sigmund Freud (1856-1939) não pensava assim. Juntamente com um de seus mentores, o também médico Josef Breuer (1842-1925), Freud obteve bastante sucesso tratando alguns pacientes com o uso da hipnose no fim do século XIX. Por conta disso, o então jovem médico, ficou absolutamente convencido da existência de pensamentos inconscientes. Ao hipnotizarem seus pacientes, Freud e Breuer notavam que os doentes narravam cenas e descreviam pensamentos que lhes pareciam completamente estranhos quando recobravam a consciência. Diante desse surpreendente fenômeno, os dois médicos só poderiam concluir que a mente desses pacientes estava dividida; havia uma parte consciente e outra inconsciente.

Continuando seu trabalho clínico independentemente de Breuer, Freud acabou chegando à conclusão de que, na verdade, essa divisão mental que ele observava em seus pacientes estava presente em todas as pessoas, inclusive as saudáveis. Em outras palavras, Freud descobriu que todos nós possuímos uma parcela da nossa vida mental da qual não temos consciência. Uma das evidências disso seria justamente o ato falho. Quando nos confundimos e acabamos trocando o nome de uma pessoa pelo nome de outra (como aconteceu com meu amigo), é a nossa parcela inconsciente da vida mental que está tentando se manifestar. Raul queria conscientemente falar o nome de seu novo amor (Luana), mas inconscientemente ainda ama sua ex-mulher, Luiza. Nesse conflito entre os dois amores, venceu quem tinha mais força afetiva dentro do meu amigo: no caso, a ex.

Se você leu minha coluna da semana passada sobre autoestima, deve estar se perguntando: “Mas, Lucas, você não tinha dito que falaria nesta semana sobre Psicanálise? Cadê?”. Calma, caro leitor. Não é fácil explicar o que é Psicanálise em poucas linhas. Por isso, achei melhor preparar o terreno primeiro. Agora que você já tem alguma noção do que é o Inconsciente, essa parcela da nossa mente sobre a qual não temos controle, fica mais fácil explicar o que é essa tal de Psicanálise. Por isso, convido você a voltar aqui na semana que vem para acompanhar a continuidade da nossa história. Combinado?

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(*) Dr. Lucas Nápoli – Psicólogo/Psicanalista; Doutor em Psicologia Clínica (PUC-RJ); Mestre em Saúde Coletiva (UFRJ); Psicólogo clínico em consultório particular; Psicólogo da UFJF-GV; Professor e Coordenador do Curso de Psicologia da Faculdade Pitágoras GV e autor do livro “A Doença como Manifestação da Vida” (Appris, 2013).

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