Nos anos 1990, o sociólogo francês Dominique Wolton lançou a obra “Elogio do Grande Público”. Faz tempo, é verdade. Só que faz mais tempo ainda que a primeira versão da novela “Vale Tudo” foi ao ar. Foi na década de 1980. No livro, o teórico europeu enxerga a TV como aparato — ou mesmo fenômeno — essencial para uma sociedade que possa compreender-se e ser coesa. Já no folhetim, era retratado um país de misérias e vexames, com uma elite predadora e indiferente aos atributos e aos entraves da nação. Foi um tremendo sucesso.
Certa vez, o lendário Nelson Rodrigues deu um conselho aos jovens: “Envelheçam!”. Pois quando jovem, a TV aberta, especialmente a Globo, reinava absoluta no Brasil. Agora, já “velha”, compreende que, sim, houve tempos melhores. Porém, sua sabedoria discreta mantém a relevância, e com a nova versão de “Vale Tudo” e tantas outras iniciativas esta senhora mostra que é como aquela casa de vó. Muitos até tentam ignorar ou afirmam estar decadente. Mas é para lá que filhos e netos correm quando querem se encontrar.
A Globo usou muitos recursos para recontar a história de Odete Roitman e sua trupe. Entre os amantes da nossa teledramaturgia — que não são poucos —, ativou a nostalgia em quem já tinha visto a versão original e atiçou o desejo e a curiosidade em quem só conhecia a novela de nome. (E que nome!). Foi algo como afirmar que uma nova versão do Roberto Dinamite jogaria a temporada atual pelo Vasco. Ou que um “remake” do Reinaldo seria a principal contratação do Atlético Mineiro na próxima janela de transferência. Tinha tudo para dar certo.
E deu! Apesar de críticas aqui e ali, o público está se divertindo, a audiência está com belo desempenho e bateu recordes quando o Brasil parou de novo para ver a (segunda) morte de Odete Roitman. (Dominique Wolton deve estar orgulhoso). Idosa porreta, a TV aberta soube explorar o vigor e os excelentes recursos das redes sociais — muita gente, inclusive, assiste às novelas por meio de cortes no TikTok, e está tudo bem. Memes, notas de falecimento, homenagens, valeu tudo para potencializar conteúdos.
O SBT também contribuiu para o hype. Convidou os telespectadores para assistir ao reality show “The Voice Brasil” logo após a morte da Odete. Não é a primeira vez que a emissora paulista mistura humildade com ousadia e, nesse blend, entrega o melhor sabor da nossa publicidade. Em uma de suas campanhas mais icônicas, produzida há algumas décadas pela então W/GGK do saudoso Washington Olivetto, o SBT se orgulhava de dizer que era “líder absoluto da vice-liderança”. Genial. Em uma das peças o texto terminava assim: “Hoje nós somos vice. Um dia, seremos versa”.
Para alguns, as ações do SBT podem até soar estranhas. Que nada. Estranho mesmo é constatar que nos quase quarenta anos que separam as duas versões de “Vale Tudo” o Brasil, embora seja outro, permanece o mesmo. Esse paradoxo pode ser encontrado no Rio de Janeiro onde se passa a novela. Na semana passada, a coluna de Ilca Maria Estevão no site Metrópoles relatou que, na cidade maravilhosa, a gigante Adidas está sendo associada ao Terceiro Comando Puro (TCP) por facções rivais. Aí, comunidades sob o domínio de grupos desafetos estariam sendo dissuadidas de usar itens da marca alemã. Em se tratando de um cartão postal onde a violência é modalidade que só perde para a natureza deslumbrante e a alegria dos cariocas, não dá para duvidar de mais esse absurdo. E mesmo que tudo não passe de um mal-entendido, verdade seja dita: o que não falta ao Rio e ao Brasil são belezas, alegrias e absurdos.
“Brasil” que é tema de abertura de “Vale Tudo”. “Brasil, mostra sua cara”, urra uma Gal Costa tão eletrizante quanto eterna. A potentíssima composição de Cazuza, George Israel e Nilo Romero é apenas mais uma daquelas inúmeras denúncias antigas que, assim como a TV aberta e a imprensa tradicional, seguem sendo fundamentais. Inclusive a Folha de S. Paulo até fez um obituário para Odete Roitman. Ficou ácido e divertido. “Grande pátria desimportante/ Em nenhum instante eu vou te trair”, diz a letra de “Brasil”. Façamos assim e estejamos atentos. Para que, quando quisermos, possamos usar Adidas. E para que nenhum jornal jamais precise dar manchete sobre a morte do país.
(*) Jornalista e publicitário. Professor na Univale e poeta sempre que possível.
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