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Crônicas do cotidiano: a folia de Reis e de ladrões

por Coronel Celton Godinho (*)

Desde menino sempre gostei de manifestações culturais e folclóricas como congadas, marujadas, bumba meu boi e as folias de Reis. Na cidade de Juiz de Fora, onde nasci e passei a maior parte de minha infância, estas festas eram tradicionais e muito apreciadas. Acompanhava de perto as folias de Reis, que faziam em quase todos os bairros da cidade.

As folias de Reis, reisado ou festa de Santos Reis, são manifestações de origem católica, que procuram rememorar a jornada dos Reis Magos, a partir do momento em que eles recebem o aviso do nascimento do Messias até o seu nascimento na manjedoura, em Belém. Por tradição, a festa é comemorada no dia 6 de janeiro, e louva os três Reis Magos Gaspar, Melchior ou Belchior e Baltazar.

Com máscaras de monstros, mandingas e roupas coloridas em versos de improviso, os palhaços das folias de Reis representam a face profana da festividade. Normalmente os componentes são os músicos, cantadores e dançarinos que representam o rei, a rainha, o mestre e o contramestre, o mateu e Catirina, sua esposa, no enredo, e mais os personagens fantásticos como o boi, a Jaraguá e a burrinha. Tem os sanfoneiros também. A música é a toada, e de estilo responsorial, ou seja, uma voz ou solista “chama” as outras vozes como resposta. Os palhaços recitam versos improvisados ou tradicionais ou as “chulas”, que têm afinidades com as músicas do sertão nordestino.

Eu e toda a meninada da rua íamos atrás das folias e, às vezes, jogávamos umas bombas em cima dos palhaços, as chamadas “cabeças de nego”, só pra vê-los pulando!!! Era uma festança para nós.

Meu pai não gostava de abrir a nossa casa para as folias, pois desconfiava daquelas pessoas com máscaras e uns outros vestidos com uma espécie de uniforme. Nunca adentraram, e só no máximo ficavam em nossa porta, entoando aqueles cânticos desafinados que meu pai detestava ouvir.

Certa vez, houve uma folia num bairro da periferia de nossa cidade, que fez muito sucesso no início, até todos serem presos para a delegacia de polícia. Era muito organizada e acompanhada por muitas pessoas, e até de outros bairros. Seus componentes eram bem vestidos e seus cantadores e músicos muito bons. Dava de “goleada” na folia que passava perto de minha casa, que estremecia os ouvidos de papai, ahahahah!!!!

A folia “rica” e bem paparicada adentrava nas casas para cantar com toda “penca” do grupo e causava um grande tumulto. Ninguém conhecia os seus integrantes e nem os seus rostos, já que na sua maioria estavam mascarados. Até o rei e a rainha usavam máscaras. A gente estranhava, mas não desconfiava, já que eram manifestações culturais que aconteciam todos os anos na mesma data, e ainda tinha o fato de sermos meninos e só queríamos é festejar e bagunçar.

Já no fim do dia, quando a folia dos “ricos” passava pela última casa da rua, surgiu uma grande quantidade de viaturas da PM e começaram a descer policiais e, de repente, a folia iniciou o corre-corre. Saímos dali também em desabalada carreira. O “pau comeu”, e foi cassetete pra todo lado pra cima dos palhaços. A PM deu voz de prisão para todos, e nas viaturas trouxeram os moradores das casas que eles haviam “visitado” como vítimas.

O que acontece é que essa folia ao entrar nas residências furtava tudo o que podia, e colocava nos sacos dos “reis e palhaços”, enquanto os cantadores muito harmônicos e afinados distraíam os seus moradores.

Eles furtaram diversas residências nos bairros por onde passavam e a PM já estava no seu encalço. O bando ficou famoso não pela belíssima festa que proporcionava, mas pela quantidade de pancadas que tomou da polícia e pela prisão de seus integrantes. Meu pai tinha razão em não deixar estranhos adentrar em nossa casa!

Ele dizia que não é qualquer um que a gente deixa entrar em nossa casa, ainda mais desconhecidos.

Na verdade, aquela folia de reis era uma folia de ladrões.

Até hoje me lembro do fato e dos versos que eles entoavam: “Olha a samambaia”, gritava um solista. O restante das vozes entoava a uma só voz: “E é chorona”. E adeus vasos de samambaia! Até isto eles furtavam! Numa das casas, levaram até o cofre!

Só ficamos sabendo que nunca mais esta folia atuou e não se teve notícias [dela] até hoje.

Mas mesmo assim continuo a apreciar as manifestações culturais e folclóricas do nosso país.

(*) Advogado militante – Coronel da Reserva da Polícia Militar.
Curso de gestão estratégia de segurança pública pela Academia de Polícia Militar e Fundação João Pinheiro

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