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Cores, calçados, caminhos

FOTO: Divulgação

Além do tarifaço do Trump, um dos assuntos mais recorrentes da última semana foi o lançamento da sandália cor “creme” da Havaianas. O modelo tem um tom muito próximo do que alguns chamam de off-white, e não demorou para virar hit nas redes sociais ao ser associado a um aspecto encardido. Isso pegou muitas pessoas pelas memórias afetivas e outras tantas pelas piadas mesmo. Todo mundo brincando com a possibilidade de comprar um chinelo novo com cara de velho, já meio vivido, com a tonalidade denunciando a ação do tempo (como se a Balenciaga já não fizesse isso com muito alvoroço, com seus tênis com cara de destruídos — lembrando que no caso da Havaianas o propósito não foi esse).

Cores e tons sempre foram motivo de muita discussão e boas ideias no marketing e na cultura. Na magnífica “Podres poderes”, Caetano já refletia:

“Será que apenas os hermetismos pascoais

Os tons, os mil tons, seus sons

e seus dons geniais

Nos salvam, nos salvarão dessas

trevas e nada mais”

A explícita homenagem a Hermeto Pascoal — que colore a música universal com improviso e maestria — e a inequívoca referência a Tom Jobim e a Milton Nascimento querem nos salvar da esquina angustiante onde o mundo se encontra. O mesmo Caetano, na menos conhecida “Rai das Cores”, diz assim em um trecho:

“Para a nuvem: branco

Para a duna: branco

Para a espuma: branco

Para o ar: azul

(Quais são as cores que são suas cores de predileção?)”

Para a Xuxa, a cor preta não necessariamente seria uma predileção. Mas, sim, ela já pintou o cabelo de moreno escuro em 2012, para a marca Wella. Na ocasião, a eterna loira (mesmo, então, morena) recebeu um belíssimo cachê de R$ 2 milhões, que foi doado à Fundação Xuxa Meneghel, dedicada a atender crianças e adolescentes. Tudo isso é muito bacana, mas pode melhorar. É que alguns anos antes da referida ação, a banda Boato já fazia a profecia do artifício publicitário na faixa “Xuxa Preta”, que começa assim:

“A Xuxa pintou o cabelo de preto

A Xuxa pintou o cabelo de preto

Causando a maior correria nas fábricas de brinquedo

Álbum de figurinha, fábrica de sandalinha

Até na oficina do Gepeto”

Qualquer fábrica de sandálias gostaria de estar associada à Xuxa, ou à Eliana, ou à Angélica. Num tempo em que as loiras povoavam o imaginário infanto-juvenil, os licenciamentos de suas marcas eram um caminho dourado. Hoje, porém, o debate está muito mais “encardido” (quero dizer que as discussões se aprofundaram e receberam mais vozes, o que é ótimo — que tempos são estes em que precisamos explicar expressões e ironias!), mas nem por isso as coisas estão resolvidas. Jamais estarão. Das músicas que Tom Zé canta, uma das minhas favoritas é “Sonho Colorido de Um Pintor”. A certa altura ele diz assim:

“Pintei de azul o presente, de branco eu pintei o futuro

O meu mundo só tem primavera

O amor eu pintei cinza escuro

Pra lá eu levei a bondade,

dourada é sua cor

Aboli a falsidade, o meu povo é incolor”

A utopia colorida da letra traz uma paz imensa e irradia esperança. Mas sabemos que o povo não é incolor. Nem as marcas. Todos e todas têm cores e bandeiras. E cada qual escolhe um lado da história. Registre-se também que, não importa a vertente, perfeição não há. Por acaso ou não, chama-se “Um Defeito de Cor” a obra mais famosa da escritora mineira Ana Maria Gonçalves, que acaba de tornar-se a primeira mulher negra a ser eleita para ocupar uma das cadeiras da prestigiosa Academia Brasileira de Letras. Não li o livro dela, mas minha amiga Deborah Vieira, em quem confio muito, diz que é impecável. Espero ler em breve e saber, de cor e salteado, o valor dessa mulher e tantas outras lições. Daí, verei muito mais tons na vida. E, com sorte, terei alguns defeitos a menos.

(*) Jornalista e publicitário. Professor na Univale e poeta sempre que possível | Instagram: @bob.villela | Medium: bob-villela.medium.com

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