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Clandestino

FOTO: Freepik

Viagem de volta para casa, da cidade da namorada. O ônibus era confortável, daqueles que a poltrona quase deita e tem apoio para as pernas. Se nada desse errado, eu chegaria em mais ou menos 11 horas, depois de atravessar o estado. Na poltrona 35, eu já estava pronto para partir: blusa de frio, pacote de salgadinhos, fone no bolso, livro aberto. Após alguns estranhos minutos de demora para a saída, entendi: um clandestino viajava encolhido atrás da 46, escondido entre o último banco e a parede do ônibus, em frente à porta do banheiro. Ele acabara de ser descoberto.

O cara que o encontrou viajaria com a esposa e os dois filhos nas últimas quatro poltronas do lado do motorista. Coincidentemente, e para azar do infiltrado, era policial. Chamou o condutor do coletivo, que, ao ver o rapaz agachado lá atrás, bradou o que deixaria os passageiros ainda mais confusos: “Ah, não! Você aqui de novo?” Balançava a cabeça de forma negativa.

O clandestino se levantou e se entregou. De imediato, disse ser menor de idade, embora fosse a maior pessoa do ônibus. Magrelo, altão. Os traços pareciam mesmo de adolescente: eu chutaria uns 16 ou 17 anos. Revelou que vinha entrincheirado desde Goiânia, a 500 quilômetros dali, e seu destino era o Rio de Janeiro, a outros mais de 800 quilômetros. Contou ser do Jacarezinho. A PM foi acionada, e ele ficou detido por lá. O ônibus partiu. Uma equipe de TV local apareceu para registrar o fato inusitado e entrevistar o rapaz.

Eu me perguntava se, caso seus planos tivessem sucesso, ele aguentaria o frio da noite com aquele shortinho. E o principal: dada a indignação do motorista, quantas vezes o rapaz tinha sido descoberto praticando o mesmo delito e qual era a frequência das viagens interestaduais daquele jovem?

Será que ele tinha uma estratégia pré-definida? Qual seria a hora certa de entrar no ônibus sorrateiramente? E de sair? O garoto teria uma técnica para pular até uma poltrona vazia sem ser percebido? Talvez desse para se deitar no compartimento superior de malas, ele era delgado. E se a vontade de ir ao banheiro batesse de uma vez, com ele ainda agachado lá atrás, como faria? E se fosse o número dois?

Quantos estados ele conhecia? Só nessa viagem frustrada foram dois e, se lograsse o êxito que pretendia, três. Será que ele viajava gratuitamente e, quando chegava ao destino, participava de eventos com entradas despercebidas por seguranças e organizadores, como um clandestino profissional? Isso era um estilo de vida?

Tipo: segunda, cinema – entra por cima, na salinha do projetor. Terça: teatro – pela janela do camarim. Quarta: futebol no estádio – fantasiado de mascote cabeçudo. Quinta: sertanejo – de chapéu, segurando um violão e se apresentando como o roadie da banda. Sexta: cervejinha em boteco chique – camisa branca, gravata borboleta e ainda atendimento de dois ou três pedidos de clientes, fazendo-se de garçom. O sábado podia variar, de parque infantil a balada universitária; de UFC a show dos Racionais; de automobilismo a casas de strip-tease. Domingo: dia de entrar em outro ônibus e conhecer outros lugares, outras pessoas, outras culturas.

Será que já fora à Europa, viajando clandestinamente de avião? Ou de navio? De iate? Falava outras línguas, arranhava um inglês? Amazônia, Pantanal? Será que já tinha ido ao Rock in Rio? À Copa? À Jornada Mundial da Juventude? Tudo deve ter começado quando, aos 12 anos, adentrou a primeira festa de 15 anos como penetra, e nunca mais parou.

A calma do clandestino enquanto se levantava do esconderijo ao ser desmascarado era impressionante. Tranquilo, era como se ele soubesse do risco, mas tinha preferido tentar. Que segurança, que convicção do que fazia! Olhei pela última vez para a 46 e tentei recomeçar o livro em minhas mãos, a cidade ficou para trás. A viagem ia ser longa. Pelo menos, estava sentado, e a poltrona era confortável.

(*) Mineiro, jornalista e mochileiro. Já rodou meio mundo e, quando não está vivendo histórias por aí, está contando alguma. Ou imaginando, pelo menos. É um fã da arte de contar histórias: as dele, as dos amigos e as que nem aconteceram, mas poderiam existir.

Acredita no poder que as palavras têm de fazer rir, emocionar e refletir; de arrancar sorrisos, gargalhadas e lágrimas; e de dar vida, outra vez, às melhores memórias. É autor do livro de crônicas “Isso que eu falei” e publica textos no Instagram no @isso.que.eu.falei.

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