Dr. Lucas Nápoli (*)
Pessoas que sofrem com vícios experimentam muita dificuldade para se controlarem. A própria definição de vício faz referência a comportamentos que o indivíduo dificilmente consegue evitar. Trata-se de uma situação em que o sujeito se sente como que obrigado por si mesmo a fazer determinadas coisas. A impressão que uma pessoa viciada tem é a de que ela perdeu o controle sobre si, que não consegue mais agir em oposição a seus impulsos.
Essa, no entanto, é uma crença ilusória que faz parte do quadro de adoecimento emocional do qual o vício é apenas um sintoma. De fato, o verdadeiro problema do sujeito viciado não é exatamente o vício, mas o “buraco” emocional que ele tenta inutilmente preencher com sua compulsão. Eu já falei sobre isso em outro artigo. Por isso, meu foco neste texto será outro. Quero aqui desenvolver a hipótese de que a chave para o tratamento de vícios é a análise dos pensamentos que antecedem e sustentam a prática deles.
Com efeito, antes de comer, se masturbar ou consumir alguma substância entorpecente (três formas típicas de vício), a pessoa costuma desenvolver certos raciocínios que pretendem justificar o ato que pretendem executar em seguida. Por exemplo, indivíduos que são viciados em comida costumam elaborar excelentes argumentos para se deleitarem com outra barra de chocolate após já terem comido uma. Eles dizem para si mesmos coisas como “Eu trabalho é para isso, para ter momentos de prazer.”, “Só se vive uma vez”, “Não tem problema comer mais uma. Amanhã eu faço o dobro de atividade física.”, “Essa é a última vez. Na segunda-feira começo uma dieta”.
Raciocínios análogos são elaborados por indivíduos viciados em masturbação, em cigarros ou em outras substâncias. É muito comum tais pessoas justificarem seus atos com o argumento de que será a última vez ou de que a ânsia de praticarem o vício é mais forte do que sua capacidade de se conter.
Como qualquer pessoa em sã consciência é capaz de perceber, trata-se das boas e velhas desculpas. Na verdade, tais justificativas servem tão-somente como falácias que utilizamos para enganar a nós mesmos e podermos nos entregar aos nossos vícios com um grau baixo de dissonância cognitiva.
Dizemos que estamos em dissonância cognitiva quando sustentamos dois ou mais pensamentos mutuamente incompatíveis ou quando nos comportamos de modo incoerente com nossas próprias crenças, valores e visão de mundo. Toda pessoa viciada experimenta constantemente momentos de dissonância cognitiva. Afinal, ela se entrega ao vício sabendo que, do seu próprio ponto de vista, aquilo não deveria ser feito. Assim, o viciado precisa diuturnamente lançar mão de justificativas autoindulgentes. Incomodado e tenso com sua própria incoerência, o indivíduo vê brotar em sua mente um conjunto de pensamentos com alto grau de persuasão que o convencem da legitimidade do vício.
Esses pensamentos aparecem com mais frequência e força quando a pessoa tenta se abster de praticar o vício. O jovem, por exemplo, que decide parar de se masturbar logo se verá pensando coisas como: “Uma vez só não faz mal.”, “Masturbação faz bem para a saúde”, “Não tem nada de mais, é só uma maneira de descarregar o estresse.”. Tais argumentos funcionam como apaziguadores da consciência do sujeito. De fato, ele SABE que não deveria voltar a se entregar a tal prática, pois conhece os efeitos deletérios que ela trouxe para sua vida. Contudo, a voz de sua consciência que lhe faz tais alertas vai ficando cada vez menos audível à medida que os pensamentos autoindulgentes começam a “pipocar” em sua mente.
Essa constatação nos mostra que o caminho para o enfrentamento dos vícios seja individualmente seja em um contexto psicoterapêutico deve passar necessariamente pelo exame daqueles pensamentos e pela criação de estratégias para sabotá-los. Isso significa que a mera prática da abstinência radical ou gradual não é suficiente para que o sujeito abandone seus vícios. Além, evidentemente, da análise dos “buracos” emocionais que os vícios tentam preencher, é preciso também mapear quais são as falácias que a pessoa conta para si mesma a fim de reduzir a dissonância cognitiva inerente à prática do vício.
O levantamento e a sabotagem dessas falácias constituem os eixos da atitude básica que eu denominei de “ligar o f*da-se para si mesmo”. Embora atualmente muitas pessoas se queixem de que se cobram muito ou de que são muito pressionadas no mundo do trabalho, não se pode negar que todos nós geralmente somos muito autoindulgentes. Temos dificuldade para aceitar nossas falhas como aspectos naturais da existência, mas estamos o tempo todo inventando desculpas para não praticarmos atividade física. Alegamos sofrer com ideais de produtividade e sucesso, mas somos mestres em criar justificativas para não fazer coisas simples como acordar um pouco mais cedo ou ter uma rotina adulta.
Ligar o f*da-se para si mesmo significa olhar para os elegantes argumentos que criamos para justificar nossos vícios e maus hábitos e enxergá-los como o que verdadeiramente são: desculpinhas esfarrapadas. O amadurecimento requer a capacidade de mapear nossas tendências autoindulgentes e nos opormos a elas.
(*) Dr. Lucas Nápoli – Psicólogo/Psicanalista; Doutor em Psicologia Clínica (PUC-RJ); Mestre em Saúde Coletiva (UFRJ); Psicólogo clínico em consultório particular; Psicólogo da UFJF-GV; Professor do Curso de Psicologia da Faculdade Pitágoras GV e autor dos livros “A Doença como Manifestação da Vida” (Appris, 2013), “O que um Psicanalista Faz?” (Ebook, 2020) e “Psicanálise em Humanês: 16 Conceitos Psicanalíticos Cruciais Explicados de Maneira Fácil, Clara e Didática” (Ebook, 2020).
As opiniões emitidas nos artigos assinados são de inteira responsabilidade de seus autores por não representarem necessariamente a opinião do jornal