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Aqui já existiu floresta!

por Prof. Dr. Haruf Salmen Espindola (*)

A floresta amazônica está em evidência, com manchetes na imprensa nacional e internacional, focalizando o problema do crescimento do desmatamento. No dia 28 de fevereiro o Brasil colocou no espaço o satélite “Amazônia 1”, primeiro totalmente feito no país. O lançamento, que ocorreu no Centro de Lançamento Sriharikota, na Índia, foi acompanhado ao vivo pelas emissoras de televisão. O objetivo principal do Amazonia 1 é monitorar (vigiar) o desmatamento da floresta amazônica.

Aproveito esta pauta para falar das “Matas do rio Doce”, porque se vocês não sabem, aqui já teve floresta. Tanto que o nome da região, no início do século XX, era esse: “Matas do rio Doce”. Aqueles que migravam para essa região diziam ao sair de suas terras: “Vamos para as Matas do rio Doce”. Quem nasceu aqui, nos últimos 50 anos, talvez nunca tenha vista uma nesga de floresta, exceto se foi passear no Parque Estadual do Rio Doce. Gerações anteriores até que viam uma nesguinha de floresta no alto da Ibituruna, mas os incêndios dos anos de 1970 e 1980 acabaram com o que havia sobrado. Para quem não sabe, é bom que se diga que todo o médio rio Doce e Mucuri, além de toda bacia do São Matheus, pertencem ao bioma Mata Atlântica, porém a relação que a sociedade brasileira estabeleceu com as matas, na primeira metade do século passado, não foi muito amistosa. Nos primeiros 60 anos do século XX se devastou tudo, sobrando na região de Governador Valadares apenas 2,5%; na região de Ipatinga foi um pouquinho mais, 5%. Nada parecido se fez em outro lugar do Brasil. O que mais impressiona é ler textos escritos nos anos de 1950, no qual se diz que as florestas não iam acabar, não tinham fim; pior, afirmações ditas no momento que praticamente já tinha acabado. Isso me trouxe à reflexão a ideia de floresta que aparece na documentação que examinei ao longo de minhas pesquisas.

A floresta do rio Doce, entre os séculos XVIII e início do XX, aparecia quase sempre em três contextos, cuja conclusão sempre leva à sua supressão: primeiro é a riqueza a ser extraída e vendida; no segundo é o que precisa ser retirado para que se revele os solos férteis para a agricultura produtiva; terceiro, é um mal a ser arrancado, porque é esconderijo de doenças, bárbaros (índios) e bandidos. A floresta também aparece em textos que manifestam a admiração por sua grandeza e pujança. Admiração de viajantes naturalistas, de cronistas e de autoridades, militares e civis, incumbidas de diferentes missões de investigação e levantamentos nos rios Doce e Mucuri. A floresta aparece associada ao perigo e medo, narrativas que servem para realçar a coragem dos que a enfrentam e ocupam.

Nesse último sentido, temos o relato de tom literário, quase poético, feito por Teófilo Otoni, sobre a expedição de reconhecimento do rio Mucuri, que comandou em 1847: “Eram as feras; e os pântanos doentios; e os rios a vadear; e as lagoas românticas e fatais; e nas clareiras enganosas, o botocudo traiçoeiro e antropófago… a floresta, sempre a floresta…” O objetivo de Teófilo Otoni é valorizar sua expedição, que segundo o relato enfrentou a marcha penosa, embaraçada pelos cipós, mosquitos, onças e índios, abrindo com facão e machado o caminho na mata. A floresta aparece como o “mataréu” que tem algo de horrendo. Enfrentá-la é “um drama sem fim”; é superar o medo noturno, a angústia de ataques dos botocudos; é sentir ficar sem mantimentos e ter que comer palmito sem sal. A floresta é o terror do botocudo, da malária, dos mosquitos, das chuvas, do pântano, das feras e, principalmente, da “floresta, ainda a floresta, bravia, secular, impossível”.

Veja que o relato de Teófilo Otoni tem uma narrativa literária que cumpri uma função importante, reforçar o imaginário da floresta como algo a ser vencido e, ao mesmo tempo, obter legitimidade para o projeto de ocupação, ao se auto atribuir o sacrifício e heroísmo. Entretanto esse destaque para a floresta não é muito comum, pois é mais frequente ela estar ausente da documentação, como se não estivesse ali, como se não existisse. Se aparece, é em passagens secundárias. Essa constatação tem uma grande importância para refletirmos:  indica uma visão de mundo em relação à natureza, que não a leva em conta a própria natureza: a floresta é algo que pode ser descartado. Hoje, quando não temos mais a Mata Atlântica, exceto alguns restos aqui e ali, além dos poucos parques e áreas de proteção, se escreve muito mais sobre a floresta.

No levantamento que eu fiz do que se escreveu sobre essa região, até os anos de 1950, predomina a ideia da floresta como obstáculo à obra de colonização e civilização. Com o romantismo do século XIX e o nacionalismo ufanista do começo do século XX, a floresta ganha prestígio, tipo o que aparece no hino nacional brasileiro; ou em frases bem ao gosto dos românticos: “Matas que parecem ter visto a infância do mundo”. Nada concreto. Na verdade predomina a ideia de que as matas conspiravam contra a obra da civilização, como hoje se diz “contra o desenvolvimento”. Para o fim das “Matas do Rio Doce” muito contribuiu a dualidade sempre presente, que coloca de um lado a floresta portadora de riquezas em sua flora, fauna e solo; por outro, a floresta como morte pela insalubridade “de seus ares” e “ferocidade de seus habitantes”. Nos dois sentidos, no imaginário da população, derrubar a floresta era uma boa coisa. Esperamos que não ocorra na Amazônia o que ocorreu aqui, em nossa terrinha. São recentes os estudos sobre história das florestas em nosso país. Nosso esforço de pesquisa, nos últimos 30 anos, tem sido contribuir um pouco para a história das “Matas do rio Doce”.

(*) Professor do curso de Direito da Univale
Professor do Mestrado GIT/Univale
Doutor em História pela USP

As opiniões emitidas nos artigos assinados são de inteira responsabilidade de seus autores por não representarem necessariamente a opinião do jornal

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