Na coluna desta semana quero conversar um pouco com vocês a respeito de um aspecto central das contribuições de Donald Woods Winnicott para o campo psicanalítico. Caso você nunca tenha ouvido falar sobre esse autor, saiba que Winnicott foi um pediatra inglês que decidiu se enveredar pela Psicanálise e acabou construindo um edifício teórico tão original que alguns comentadores consideram ter constituído um novo paradigma no campo psicanalítico.
Com efeito, Winnicott foi o primeiro grande teórico da Psicanálise a enfatizar o papel do ambiente no desenvolvimento psicológico. Para muitos de vocês, o impacto dos fatores ambientais na formação do sujeito pode parecer um aspecto óbvio, mas é preciso levar em conta que o ângulo típico de visão de um psicanalista sobre a vida psíquica não é o mesmo de um observador comum. Explico: em um tratamento psicanalítico, temos acesso à NARRATIVA de uma pessoa sobre si e sobre sua história. Uma narrativa não é uma descrição objetiva da realidade, mas o produto de interpretações e construções SUBJETIVAS sobre as experiências vividas. É por isso que os analistas costumam dizer que não trabalham com a realidade material, mas com a realidade psíquica. De fato, é somente a esta última que se tem acesso numa análise.
Em decorrência disso, os primeiros grandes teóricos do campo psicanalítico, a começar por Freud, sempre privilegiaram O PONTO DE VISTA DO SUJEITO sobre o ambiente ao invés dos atributos objetivos do contexto. Exemplificando: tradicionalmente, diante do relato de um paciente acerca do fato de sua mãe ter tido depressão pós-parto, por exemplo, a tendência dos analistas seria a de dar pouca atenção às possíveis consequências objetivas da indisponibilidade materna e focar apenas no modo como o sujeito teria “processado”, por assim dizer, aquela situação.
O fato de Winnicott ter sido pediatra além de psicanalista, certamente foi decisivo para que ele rompesse com essa espécie de solipsismo psicanalítico. De fato, Winnicott podia verificar em sua clínica pediátrica a evidente influência que as atitudes dos pais e, sobretudo, da mãe exercem sobre o bebê. Aliás, como sugeri anteriormente, qualquer observador comum é capaz de constatar a obviedade de que o comportamento humano, principalmentenos primeiros anos de vida, é profundamente dependente de variáveis ambientais. Podemos dizer, portanto, que Winnicott, na esteira de um Sándor Ferenczi, talvez tenha sido o grande responsável por despertar a Psicanálise de seu sono subjetivista.
Ao abordar o papel crucial do ambiente no desenvolvimento emocional, Winnicott introduziu a noção fundamental de “ambiente suficientemente bom”. De acordo com o autor, um contexto dessa natureza seria indispensável para a constituição de um indivíduo emocionalmente saudável. Vale assinalar que, do ponto de vista winnicottiano, todos nós possuímos tendências inatas para a conquista dos atributos que constituem a saúde psíquica. No entanto, tais tendências só podem fazer a passagem do estado de potência para a condição de ato (para utilizar uma terminologia aristotélica) se formos criados num ambiente suficientemente bom. Exemplificando: para Winnicott, todo o mundo nasce com a tendência para desenvolver a capacidade de se importar com os outros, ou seja, de não ser indiferente ao sofrimento alheio, por exemplo. No entanto, essa tendência pode não se concretizar ou se desenvolver de modo distorcido se o ambiente não facilitar a conquista dela.
Facilitar: essa é uma palavra que nos ajuda a entender o conceito de ambiente suficientemente bom. Trata-se de um contexto que facilita a expressão daquilo que já está potencialmente presente no sujeito. E o que significa facilitar? Ora, significa basicamente APOIAR SEM INVADIR. Uma empresa, por exemplo, facilita a vida de seus colaboradores quando lhes fornece os recursos e ferramentas necessários para a execução do trabalho, mas não os sufoca com excesso de regras e demandas. Da mesma forma, ao falar de um ambiente suficientemente bom, Winnicott está se referindo, principalmente, a pais que sustentam, suportam, asseguram seus filhos, mas, ao mesmo tempo, lhes oferecem o espaço necessário para que possam se expressar. Nesse sentido, uma mãe que negligencia a alimentação de seu filho é tão “insuficientemente boa” quanto uma que quer obrigar a criança a se alimentar o tempo todo.
Ao contrário do que o excesso de ansiedade parental pode levar alguns pais a pensarem, a oferta de um ambiente suficientemente bom não é um processo difícil e que dependeria de cursos e instruções técnicas. Não! Winnicott sempre asseverou que a grande maioria dos pais é, por natureza, suficientemente boa. Afinal, qualquer pessoa de bom senso sabe que não se deve proteger uma criança em excesso ao mesmo tempo em que não se deve deixá-la fazer o que quiser a qualquer momento. A menos que estejam em condições emocionais seriamente comprometidas (o que pode acontecer, obviamente), os pais sabem que a boa educação é sempre fruto de uma receita absolutamente incomunicável, intuitiva e natural, em que se combinam doses de presença e ausência, aproximação e distanciamento, segurança e liberdade.
(*) Dr. Lucas Nápoli – Psicólogo/Psicanalista; Doutor em Psicologia Clínica (PUC-RJ); Mestre em Saúde Coletiva (UFRJ); Psicólogoclínico em consultório particular; Psicólogo da UFJF-GV; Professor do Curso de Psicologia da Faculdade Pitágoras GV e autor dos livros “A Doença como Manifestação da Vida” (Appris, 2013), “O que um Psicanalista Faz?” (Ebook, 2020) e “Psicanálise em Humanês: 16 Conceitos Psicanalíticos Cruciais Explicados de Maneira Fácil, Clara e Didática” (Ebook, 2020).
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