Dois dos maiores fenômenos do audiovisual em 2025, aqui no Brasil, têm relação com crianças, adolescentes e, em medidas distintas, redes sociais. “Adolescência”, minissérie da Netflix, foi um fenômeno no primeiro semestre, mobilizando leigos e especialistas em debates em casa, em programas na TV e na web, nos textos em jornais e blogs, nos artigos científicos e por aí vai. Feita no Reino Unido, a série conversa com o mundo inteiro e sacudiu também nosso país. Já é hora de rever.
Mais recentemente, o influencer Felca publicou um vídeo claro e contundente sobre episódios absurdos ocorridos com crianças nas redes sociais — lamentavelmente, nada diferente do que já acontece há anos, registre-se. E eis que o conteúdo do jovem caiu nas graças de todo mundo. Assim como Trump uniu o Brasil ao criticar o PIX, Felca operou o milagre de agregar a esquerda, a direita, o rico, o pobre, os gêneros e as etnias. Depois de Felca, o termo “adultização” jamais será o mesmo por aqui. E isso é ótimo.
O fenômeno em que se converteu o vídeo evoca, inicialmente, a consciência reiterada daquilo que o dia a dia e o senso comum alimentam em nós: a internet é como o “mundo real”, tem gente boa e gente ruim, tem golpista e tem soluções para muitos problemas etc. Sim, tudo isso faz sentido. A esta altura, negar os benefícios dos avanços tecnológicos que alcançamos seria, além de um clichê barato, um enorme retrocesso. O que Felca fez, de forma acessível e precisa, foi denunciar excessos — para ficar no eufemismo.
Mas o conteúdo do influencer reacende a luz amarela para questões subjacentes que não podem ser ignoradas — e, mais uma vez, serão. Explico com uma pergunta: que país é este que precisa esperar o vídeo de um rapaz para se comover frente a uma chaga que o castiga desde sempre? O Congresso Nacional, as escolas, os condomínios, a Presidência da República, todos estavam à espera de um conteúdo viral para compreender a urgência da questão?
Ironias à parte — mas nem tanto —, sabemos que há o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), temos certeza que há gente séria trabalhando nas instâncias competentes do executivo, do legislativo, do judiciário e da sociedade civil para mitigar problemas como os enumerados por Felca. Mas nem por isso há motivos para ter muita esperança. Pelo contrário.
No dia 12 de maio deste ano, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) publicou a última edição do Atlas da Violência. Entre tantas informações relevantes, o riquíssimo documento mostra um aumento de registros de casos de violência física, sexual, psicológica e episódios de negligência contra crianças e adolescentes, a partir de 2020. Índices como este e muitos outros foram devidamente publicados pela imprensa e comentados por pesquisadores. E… Nada. O vídeo de Felca foi publicado no dia 6 de agosto. E (quem nos dera)… Tudo!
Houve um tempo em que a chamada “grande mídia” (a essa altura, outro senso comum) pautava as ruas e pressionava o governo. (Não é que as big techs sejam pequenas.) Mas hoje, os dados oficiais de um instituto da envergadura de um Ipea, repercutidos pela imprensa, têm menos impacto do que um vídeo caseiro. Repito, o que Felca fez é louvável e é muito bom que a ação tenha surtido tamanho efeito. O problema — mais um — é que os desafios do país são muitos e os Felcas, aparentemente, são raríssimos. Ou seja, além de poder contar com as boas ações de moços como ele, deveríamos voltar a prestar atenção no jornalismo sério, na ciência feita com isenção e rigor, nas instituições que nos entregam números confiáveis e caminhos honestos para termos um futuro mais seguro.
Esta não foi a primeira vez que Felca colocou o dedo em feridas que, de modo geral, ignoramos. Esperamos que não seja a última. Com seus 27 anos, ele tem um longo caminho pela frente, que pode ser de inspiração para tantos quanto possível. Quando tinha os mesmos 27, Kurt Cobain nos deixou em 1994. Com o Nirvana, ele lançou a perturbadora faixa “Rape Me”, no grande álbum “In Utero”. “Rape me/ Rape me, my friend” (Estupre-me/ Estupre-me, meu amigo). É pesado, né? Mas parece que a gente não se impressiona se a mensagem vier comportada e objetiva, como faz o Ipea. “I’m not the only one” (Eu não sou o único), canta um taciturno Cobain na mesma canção. Por aqui, cada uma das nossas crianças é única. E muitas delas, infelizmente, estão em maus lençóis.
(*) Jornalista e publicitário. Professor na Univale e poeta sempre que possível | Instagram: @bob.villela | Medium: bob-villela.medium.com
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