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A Pérola, o pop e o pavor

FOTO: Divulgação

“Em virtude do tempo hoje não há futebol / Veio uma chuva de vento e levou pra bem longe o sol”, canta a eterna Jovelina Pérola Negra em “O Dia Se Zangou”. Sim, a chuva veio com requintes muito trágicos e a onda de desamparo e destruição tem sido amplamente divulgada. Não faltaram avisos. Uma rápida passagem pelas notícias que envolvem os terríveis episódios enfrentados pelo Rio Grande do Sul mostra que houve vários alertas de cientistas e institutos muito respeitados sobre tudo que poderia acontecer. E, infelizmente, aconteceu de tudo.

Tem havido futebol no Brasil, entretanto. Por essa, nem a lendária Jovelina esperava. Enquanto eu escrevo este texto sobre algo que, definitivamente, não gostaria de tratar, Grêmio, Internacional e Juventude lutam para paralisar o Brasileirão. Com o estado que representam em colapso, com estádios debaixo d’água, com os conterrâneos contando mortos e vivendo dias de uma angústia incalculável, os clubes ainda não obtiveram sucesso. Outros atletas e entidades têm se sensibilizado. É possível que tenham conseguido suspender os jogos até a publicação deste artigo. É longa a discussão sobre ser, ou não, procedente parar. Ainda penso que, de forma simbólica, para demonstrar um respeito devido, algo como duas semanas sem jogos seria de bom tom.   

“O dia se zangou então choveu, choveu / Temporal baixou e a cidade se alagou”, canta nossa Pérola Negra na mesma canção. A música parece mesmo ser sempre igual em um país tão acostumado a ser solidário e tão habituado a conviver com tragédias. Gente morta por afogamento ou soterramento, animais perdidos, falecidos, bairros que desaparecem em madrugadas, em dias, em noites de terror. Bahia, Minas, Rio, São Paulo… E agora os gaúchos atravessando, nos últimos meses, uma inacreditável sucessão de horrores. Em todos os casos, a união das pessoas é comovente e digna de aplausos. E, sem ironia, a esperança do brasileiro se eleva para propor um horizonte mais sereno.      

A mobilização tem feito a diferença. A Ambev suspendeu a produção de cerveja na fábrica de Viamão/RS, para envasar água potável. A Renner, que tem sede em Porto Alegre, anunciou a doação de milhares de itens de vestuário, calçados, cama, mesa e banho. A gigante Unilever publicou, em seu Instagram, a destinação de mais de 140 toneladas de produtos de higiene pessoal, limpeza e alimentos para a população afetada. Indústrias farmacêuticas, bancos, pequenas empresas, todo mundo se uniu. Até o Cascão, da Turma da Mônica, entrou na água pela segunda vez na história para incentivar as doações (a primeira vez tinha sido em 1983, por causa de enchentes em Santa Catarina), em uma linda iniciativa da Maurício de Sousa Produções.

Mas em que pese a articulação de tantas marcas e a cada vez mais nítida compreensão de seus papéis como agentes de impacto na sociedade (para o bem ou para o indesejável, já que todo mundo deixa sua pegada no meio ambiente), será que temos percebido os avanços necessários na chamada “gestão da coisa pública”? Será que nossos representantes estão separando um tempo em suas agendas para discutir o longo caminho até que o som de Jovelina deixe de ser uma realidade e passe a ser somente um belo exemplar do nosso samba? Que estejamos atentos e atentas a isso. E que estejamos atentos e atentas aos avisos da ciência e aos recados que a música pode dar.       

A capa do novo álbum da Dua Lipa, por exemplo, traz bastante água. Sugere que a cantora está em um mar aberto, muito perto de um tubarão dos bravos, algo que presumimos a partir da enorme barbatana. Apesar da ameaça, ela aparenta estar tranquila e segura. O nome do disco (cujas músicas eu curti bastante) é “Radical Optimism”. Neste aspecto, o samba visceral de Jovelina Pérola Negra e o pop escancarado de Dua Lipa convergem para os tempos que estão soando. Ora, é preciso um otimismo muito radical para convivermos tão passivamente com a emergência climática, com dias tão zangados e com tantas vidas perdidas. As pessoas e as marcas vão continuar agindo, o que é ótimo. Mas é muito pouco. Se o Estado não fizer a sua parte, o tanto que o Cascão vai ter que entrar na água não está no gibi!


Bob Villela
Jornalista e publicitário.
Coordenador dos cursos de Jornalismo e Publicidade e Propaganda da Univale.
Instagram: @bob.villela
Medium: bob-villela.medium.com

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