Grupo descreve trajetória de protesto, repressão, luta e glória em documentário
O que é, o que é?
Clara e salgada
Cabe em um olho
E pesa uma tonelada
Tem sabor de mar
Pode ser discreta
Inquilina da dor
Morada predileta
Na calada ela vem
Refém da vingança
Irmã do desespero
Rival da esperança
Pode ser causada por
Vermes e mundanas
E o espinho da flor
Cruel que você ama
Amante do drama
Vem pra minha cama, por querer
Sem me perguntar, me fez sofrer
E eu que me julguei forte
E eu que me senti
Serei um fraco quando outras delas vir
Se o barato é louco e o processo é lento
No momento, deixa eu caminhar contra o vento
O que adianta eu ser durão e o coração ser vulnerável?
O vento não, ele é suave, mas é frio e implacável
(É quente)
Borrou a letra triste do poeta
(Só)
Correu no rosto pardo do profeta
Verme, sai da reta
A lágrima de um homem vai cair
Esse é o seu B.O. pra eternidade
Diz que homem não chora
Tá bom, falou
Não vai pra grupo irmão
Aí, Jesus chorou
A letra inicial da música “Jesus Chorou” reflete bem a trajetória dos rappers Mano Brown, Edi Rock, DJ KL Jay e Ice Blue que tiveram a história retratada no documentário “Racionais: das ruas de São Paulo para o mundo”, em novembro de 2022, na Netflix.
Dirigido por Juliana Vicente, o doc mostra o início da carreira do grupo, as dificuldades enfrentadas com suas letras de protesto e como eles conseguiram, com suas canções, motivar e mudar a realidade de muitas pessoas que vivem em periferias ou sofrem preconceitos devido a cor, religião, condição socioeconômica, etc.
Com a maior parte dos integrantes originários de áreas periféricas de São Paulo, a violência, a miséria e a falta de recursos na década de 1970 e 80 marcaram a ferro e fogo o DNA dos artistas, que, descontentes com a situação, buscaram na música uma forma de expressar a dor, a raiva e o sofrimento que viviam.
“Eu morei na zona de guerra. Todo dia tinha um corpo lá. O relacionamento com cadáver começou a ser natural. Nos anos 80 era assim”, afirma Ice Blue.
E foi no rap que eles encontraram, em 1988, a maneira mais clara de transformar em poesia toda luta vivida por povos suburbanos, relegados no Brasil. Como “metralhado” na música “Vila Loka” (parte 1): “Onde estiver, seja lá como for, tenha fé porque até no lixão nasce flor”.
Fazer sucesso naquela época era algo tão difícil, ainda mais com rap, que nem mesmo os integrantes da banda acreditavam.
“Do jeito que era naquela época não ia chegar a lugar nenhum. Mente vazia mesmo. Pronto para virar ladrão. Esse negócio de gravar, virar cantor era coisa tão distante como Júpiter”, declara Pedro Paulo Soares Pereira, nome que apenas sua esposa e íntimos conhecem por se tratar do ícone Mano Brown, ou cachorro louco se preferir.
Com músicas falando sobre drogas, vida do crime e a violência tão comum no dia a dia dos artistas, opressão e preconceito de policiais e outras dificuldades vividas por pretos e pretas, não demorou muito para que o grupo chamasse a atenção dos ouvintes e também da polícia, que começou a perseguir os integrantes do grupo. Prisões ocorreram, agressões também.
Mas o sucesso não ficou encarcerado, especialmente quando, em 1997, decidiram gravar a canção “Diário de um detento”, no álbum “Sobrevivendo no Inferno”.
A música retrata os acontecimentos do dia 2 de outubro de 1992, quando uma intervenção da Polícia Militar do Estado de São Paulo, para conter uma rebelião na Casa de Detenção de São Paulo, o famoso Carandiru, causou a morte de 111 detentos. Aí o grupo explodiu. Ninguém conseguia mais conter as “rajadas” de protesto. O detalhe é que o clipe da música foi gravado dentro do antigo presídio, que foi demolido em 2002.
Daí veio prêmios. Em 1998, venceram o prêmio MTV Video Music Brasil. Em 2002, veio o prêmio Hutúz. Em 2014, o Multishow; e, em 2015, foi eleito o melhor álbum pela Rolling Stones Brasil. E detalhe: sem poder tocar em muitas rádios por causa do conteúdo das letras e sem apoio da mídia. Apenas mostrando a verdade com coragem. Com isso, ganharam o mundo com shows na Europa, Japão e vários outros países.
Mas junto com o sucesso vem também responsabilidades. Eles entenderam que para mudar a vida e o dia a dia dos fãs precisavam ser um grupo que mostrava a realidade assim como possibilidades, para que o ciclo de violência onde viviam mudasse. O resultado: uma mudança de pensamento no Brasil.
“Eu quero que os pretos me ouçam. Eu quero chegar ao coração deles. Eu faço música para eles. É a minha forma de fazer política. O racismo é errado, a injustiça é errada. [Mas] se você é branco e está vendo o preto sendo discriminado, você pula na bala também”, diz Mano Brown no documentário.
Infelizmente, o racismo, as injúrias raciais e a miséria ainda não acabaram. Pelo menos, porém, com a música, parte da população acordou e muita coisa aconteceu nesses mais de 30 anos “racionais”. Os detalhes deste despertar de luta e glória deixo para você conferir assistindo com os olhos e ouvidos bem abertos cada minuto dessa espetacular produção.