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Mídia, imaginação e alfabetização  

FOTO: Divulgação

“Os seres humanos são animais mamíferos, bípedes, que se distinguem dos outros mamíferos, como a baleia, ou bípedes, como a galinha, principalmente por duas características: o telencéfalo altamente desenvolvido e o polegar opositor.”

O trecho acima, que muitos devem ter reconhecido, é do curta-metragem “Ilha das Flores”, obra-prima do audiovisual criada por Jorge Furtado. No filme, ele conta a trajetória de um tomate, desde a plantação até chegar a um lixão, para mostrar como tudo está ligado e converge para a perpetuação de descalabros e misérias. Na tela de cinema, ou em qualquer outra tela disponível, o horror já se converteu em entretenimento faz algum tempo. O filme de Furtado, a exemplo de outras joias do acervo dele, contém atributos que incomodam o espectador mais sensível, que, em algum momento — ou em vários — fica se perguntando como pode ser tão divertido observar os acidentados itinerários atravessados pela humanidade. Isso tudo, inclusive a ironia, socam e sacodem os aspectos mais limitados e limitantes da nossa imaginação, muitas vezes calcados em teorias mais limpinhas.

A natureza da condição humana de imaginar é intrínseca, intrincada e instigante. Pertence a nós como se não fosse possível estar vivo sem passear por caminhos e castelos de estímulos e elucubrações, para o bem e para o mal. E não é mesmo possível. Habitar a massa cinzenta e tê-la como inquilina nos impele uma sucessão extenuante de minicertezas (porque nada é exatamente como pensamos ou ensaiamos) e fantasmas (já que boa parte do que transita em nossa urbe de neurônios nem sequer chega perto de acontecer). De todo modo, essa é a essência de quem nasce com o telencéfalo altamente desenvolvido e o polegar opositor.

A leitura do livro “O imaginário segundo a natureza”, de Henri Cartier-Bresson, permite a tessitura de versões do que sentimos e vemos com lentes impregnadas de uma quase impossível lucidez poética. O francês é um dos mais celebrados fotógrafos da história, também foi desenhista e, como fotojornalista, fundou a Agência Magnum, uma iniciativa que será cultuada para todo sempre por trazer duas propostas muito nobres. Em primeiro lugar, a ideia de uma cooperativa de fotógrafos, que teriam mais autonomia sobre o ofício e sobre a renda advinda dele. Em segundo lugar, e o mais encantador, pelo refinamento e pela elevação da condição da fotografia para a imprensa a algo que fosse, digamos, artístico.  

Mas se antigamente a imaginação era um macete de empatia; e ver, constatar algo, era chocante, hoje a fruição do espetáculo, embora siga bem-sucedida, já não dá conta de chocar nem com a mais cortante “realidade”. Israel, Palestina, Rússia, Ucrânia. Imagine quantas camadas, tente se surpreender com tudo que está em torno disso e falhe miseravelmente. Irã e Israel, recentemente, protagonizaram uma perigosa coreografia de hostilidades e, fora uma variação aqui e ali no dólar e no preço do petróleo, a vida seguiu. O ser humano com telencéfalo altamente desenvolvido e o polegar opositor parece estar cansado demais para discernir e implicar-se.

“Miséria é miséria em qualquer canto
Riquezas são diferentes
A morte não causa mais espanto
Miséria é miséria em qualquer canto”

A miséria cantada pelos Titãs segue recrudescendo e gerando poucas ações além das iniciativas egoístas e economistas de proteção. Culpa de todos, inclusive da mídia e da indústria do entretenimento — com o perdão da generalização. Os ataques às torres gêmeas parecem ter saído de um filme. E as cenas de tantos blockbusters parecem ter se inspirado na atmosfera do 11 de setembro, ou do nazismo, ou dos espaços dominados pela milícia no Rio. Ninguém mais distingue entre o fato e a imaginação. E o pior: todo mundo parece se importar pouco com isso.

A foto mais visceral de Cartier-Bresson, no mais decisivo instante do testemunho privilegiado da história, talvez fosse inócua na atual situação de anestesia. A própria atividade nas redes sociais soa como uma encenação estéril. Mas será? O bilionário Elon Musk trava uma guerra contra Alexandre de Moraes. E os motivos de tudo isso precisam ser verificados para além das espantosas imaginações que circulam pelas cabecinhas de milhões de pessoas. Por isso, jamais se falou tanto sobre a alfabetização midiática, que, em linhas gerais, trata de auxiliar os cidadãos a exercitarem uma leitura e uma postura críticas sobre a mídia e o que ela emana. As iniciativas ainda são tímidas, mas têm crescido. Sair da miserável alienação é um importante passo para compreender gênios como Jorge Furtado. E para fugir de ilhas de narrativas onde há apenas lixo, mas muitos costumam ver flores.


(*) Bob Villela
Jornalista e publicitário.
Coordenador dos cursos de Jornalismo e Publicidade e Propaganda da Univale.
Instagram: @bob.villela
Medium: bob-villela.medium.com

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