Na coluna da semana passada expliquei que Lacan interpreta a caracterização freudiana do complexo de Édipo como um mito e não como uma descrição do que de fato acontece com todas as crianças por volta dos quatro ou cinco anos de idade. Ao fazer isso, o analista francês tornou possível a universalização do complexo de Édipo, isto é, Lacan tornou viável a possibilidade de se pensar que o complexo de Édipo acontece com todas as pessoas, independentemente da configuração familiar da qual são provenientes. Com efeito, tratando o Édipo como um mito de Freud, Lacan pôde extrair da descrição freudiana, abarrotada de imagens acidentais e contingentes, traços estruturais (portanto, universais) que fazem parte da condição humana, independentemente da época e do lugar.
Fiquei de apresentar nesta segunda parte do texto um esboço dessa estrutura que está na base da caracterização feita por Freud, mas não se confunde com ela. Tomemos, então, o mito freudiano e destaquemos seus elementos estruturais.
Freud começa sua descrição do Édipo com a imagem de um menino que tem cerca de quatro ou cinco anos e está vivenciando o que o pai da Psicanálise chama de “fase fálica” do desenvolvimento sexual. Nesse estágio, a criança do sexo masculino estaria intensamente interessada no prazer proporcionado pelo pênis. Uma menina da mesma faixa etária também passaria por essa fase e seu interesse estaria voltado para o clitóris, parte do corpo feminino equivalente ao pênis. Do ponto de vista estrutural, tais imagens representam o fato universal de que nosso corpo é fonte de gozo, ou seja, de que a experiência de prazer é primariamente autoerótica.
Na sequência da narrativa freudiana, tanto o menino quanto a menina passam a nutrir fantasias sexuais envolvendo a mãe, ou seja, passam a tomar a genitora como objeto sexual, vinculando-a ao prazer que experimentam em seu próprio corpo. Essa imagem da criança conectando seu gozo autoerótico ao outro materno ilustra o processo estrutural que Lacan nomeou como ALIENAÇÃO. Trata-se do fato de que todo ser humano nasce num ambiente social já formatado, com uma cultura própria da qual ele não pode escapar. Assim, no início da vida, todos nós somos obrigados a nos submetermos a esse ambiente (que Lacan chama de Outro com “O” maiúsculo). Dessa forma, o nosso próprio gozo que, originalmente é autoerótico, passa a estar “adaptado” ao Outro, subordinado às regras dele. No mito de Freud, esse fato universal é expresso pela imagem da criança apaixonada pela própria mãe.
Essa fantasia incestuosa será barrada na narrativa freudiana pela incidência de dois elementos: o reconhecimento da diferença anatômica entre os sexos e a ameaça de castração. Após algum tempo se divertindo com seu órgão genital, o menino recebe a advertência de que se continuar se tocando, seu pênis será cortado. Essa advertência pode ser feita tanto pelo pai quanto pela mãe, mas, de acordo com Freud, em geral o menino tende a associá-la ao pai. A princípio, o garoto não acredita nessa ameaça. Ela só é levada a sério quando o menino se depara com a região genital feminina. Desconhecendo a existência da vagina, o pequeno é levado a crer que outrora havia ali um pênis que teria sido cortado pelo excesso de manipulação do órgão, o que confirmaria a realidade da ameaça de castração paterna. Temeroso de perder o pênis, o menino, então, renunciaria a continuar se tocando e, ao mesmo tempo, abandonaria o desejo incestuoso pela mãe, objeto de suas fantasias masturbatórias. A menina, por sua vez, não tendo o pênis, não sofreria a ameaça de castração, mas também seria impactada pela descoberta da diferença anatômica entre os sexos. Segundo Freud, a garota se sentiria prejudicada e “incompleta” por não ter o órgão sexual masculino e, ao invés do medo da castração, desenvolveria uma inveja do pênis. Isso levaria a menina a também se afastar da mãe pelo fato de a pequena responsabilizar a genitora por ter nascido sem pênis.
Toda essa parte da narrativa edipiana, conhecida na teoria de Freud como complexo de castração, pode ser encarada como uma imagem mítica do processo estrutural que Lacan denomina de SEPARAÇÃO. Como dissemos acima, a condição humana está estruturada de tal forma que inicialmente somos forçados a nos submetermos ao Outro, isto é, ao ambiente sociocultural e familiar em que nascemos. Contudo, não somos apenas um objeto manipulado pelos caprichos desse Outro. À medida que crescemos, vamos nos tornando cada vez menos assujeitados ao ambiente sociocultural e familiar. Esse progressivo afastamento é o que Lacan chama de SEPARAÇÃO, processo complementar à ALIENAÇÃO prévia.
A separação nos permite perceber que o Outro (representado no mito freudiano pela mãe) não é completo e que, portanto, há espaço para o desejo, para a invenção, para uma existência que não seja meramente a repetição do que já existe. A imagem que ilustra essa incompletude do Outro no mito freudiano é a da menina se queixando de que a mãe (sem pênis) lhe fez também sem pênis. Por outro lado, a ameaça de castração do pai junto ao menino é uma imagem que representa uma função que, talvez, na falta de termo melhor, Lacan chamou de “fálica”. Com efeito, ao ameaçar o garoto com a perda do pênis, o pai, inadvertidamente, transforma o órgão num objeto extremamente precioso, garantidor de uma suposta completude. Essa imagem representa o fato estrutural de que o nosso desejo está sempre orientado para um ideal de completude (a tão falada felicidade) que nunca se realiza, mas está sempre no horizonte, como se estivéssemos eternamente correndo atrás de um objeto precioso (o “falo”) capaz de nos tornar completos e, portanto, “felizes para sempre”.
Ousei apresentar aqui apenas um esboço de uma leitura do complexo de Édipo como mito. Por razões de espaço não foi possível abordar diversos outros aspectos e até mesmo desenvolver em mais detalhes os que foram mencionados. À guisa de conclusão, podemos dizer sinteticamente que o Édipo freudiano é um mito que representa o processo de constituição do homem como sujeito desejante em sua relação com o Outro.
(*) Dr. Lucas Nápoli – Psicólogo/Psicanalista; Doutor em Psicologia Clínica (PUC-RJ); Mestre em Saúde Coletiva (UFRJ); Psicólogo clínico em consultório particular; Psicólogo da UFJF-GV; Professor do Curso de Psicologia da Faculdade Pitágoras GV e autor dos livros “A Doença como Manifestação da Vida” (Appris, 2013), “O que um Psicanalista Faz?” (Ebook, 2020) e “Psicanálise em Humanês: 16 Conceitos Psicanalíticos Cruciais Explicados de Maneira Fácil, Clara e Didática” (Ebook, 2020).
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