Excesso de timidez é um problema de saúde mental enfrentado por muitas pessoas. Trata-se de uma aversão, a princípio injustificada, ao contato e relacionamento com outras pessoas. Essa aversão pode se manifestar por meio de uma resistência a se expor publicamente ou a conversar com pessoas desconhecidas, por exemplo. Quando não consegue evitar uma situação social, o tímido experimenta geralmente muita ansiedade e vergonha.
Ansiedade, como já expliquei em outros artigos, é a emoção que vivenciamos quando estamos sob algum tipo de ameaça. Já a vergonha é o sentimento que normalmente experimentamos quando não nos comportamos de acordo com aquilo que se espera de nós numa determinada situação. Portanto, podemos dizer que o tímido inconscientemente acredita (1) que situações sociais são fontes de perigo e (2) que sempre está em desacordo com aquilo que se espera dele.
É justamente o enfoque nessas duas emoções e no que elas indicam como modos de afetação com o mundo que nos levará a uma concepção psicanalítica da timidez excessiva, visão que vai na contramão das teorias tradicionais que tratam dessa patologia. Com efeito, as teorias clássicas sobre timidez excessiva afirmam que pessoas que sofrem com esse problema estão distorcendo sua percepção da realidade em função de experiências sociais aversivas vivenciadas no passado, especialmente na infância. Assim, de acordo com essas teorias, uma criança que foi ridicularizada na escola durante a apresentação de um trabalho oral seria uma provável candidata a desenvolver timidez excessiva.
De fato, não podemos negar que experiências como essa certamente contribuem para que uma pessoa comece a perceber a exposição pública como uma situação intrinsecamente ameaçadora. Contudo, minha experiência de mais de uma década como terapeuta me autoriza a dizer que tais vivências aversivas não são suficientes para desencadear um quadro de timidez excessiva. É preciso que um segundo elemento se apresente ao sujeito internamente para que ele passe a vivenciar situações sociais como fontes de ansiedade e vergonha.
Esse segundo elemento é produto da relação não do sujeito com o mundo externo, mas do sujeito com aquilo que, em Psicanálise, chamamos de superego. Trata-se de um conceito que utilizamos no campo psicanalítico para designar os derivados psíquicos da internalização dos aspectos coercitivos do cuidado parental. Em termos mais simples, o superego é produto das punições e ameaças feitas por nossos pais com o objetivo de controlar nosso comportamento. É como se trouxéssemos para dentro de nós os castigos e advertências dos pais. Assim, na vida adulta, não estamos mais sob o controle deles, mas temos que aturar o superego em nossas cabeças nos censurando, nos admoestando e… nos punindo.
Há pessoas cujo superego é mais brando e razoável, mas há outras nas quais ele assume uma conotação praticamente persecutória. As pessoas excessivamente tímidas estão justamente nessa segunda categoria. Em minha prática clínica, nunca encontrei um sujeito com essa problemática que não apresentasse um superego extremamente feroz e coercitivo. O paciente não consegue viver de forma espontânea e natural, pois seu superego está o tempo todo censurando-o, criticando-o, fazendo com que se sinta sempre aquém do que supostamente deveria ser. Por isso, quando se expõe a uma situação social, tal pessoa já se apresenta com a sensação de ser inferior e inadequado. O que ela teme, na verdade, não é que os outros a julguem e a critiquem, mas que as pessoas “comprovem” o vexame, o fracasso, a porcaria que ela é de acordo com a avaliação do seu superego.
Entendeu? O fator determinante para o desenvolvimento da timidez excessiva não é o conjunto de experiências aversivas que o sujeito vivencia fora de casa, pois tais experiências serão interpretadas com base no que a própria pessoa pensa sobre si mesma, ou seja, com base naquilo que seu superego afirma a seu respeito. Um indivíduo que possua um superego “light” provavelmente irá encontrar uma maneira saudável e bem-humorada de lidar com brincadeiras de mau gosto e zombarias de colegas porque tais implicâncias não farão eco com seu superego. Por outro lado, alguém que seja vítima de um superego feroz e cruel, provavelmente se sentirá muito mal com troças e deboches, pois verá nessas manifestações uma confirmação daquilo que escuta internamente.
Se levarmos em conta que a “qualidade” do superego, ou seja, se ele será mais brando ou mais cruel, depende fundamentalmente do modo como os pais se relacionam com o sujeito, a melhor profilaxia para a timidez excessiva estaria justamente na melhoria do comportamento dos pais. Quanto mais acolhedores e sensíveis e quanto menos punitivos e severos forem os pais, menos probabilidade haverá de terem filhos com superegos violentos e implacáveis.
Dr. Lucas Nápoli – Psicólogo/Psicanalista; Doutor em Psicologia Clínica (PUC-RJ); Mestre em Saúde Coletiva (UFRJ); Psicólogo clínico em consultório particular; Psicólogo da UFJF-GV; Professor do Curso de Psicologia da Faculdade Pitágoras GV e autor dos livros “A Doença como Manifestação da Vida” (Appris, 2013), “O que um Psicanalista Faz?” (Ebook, 2020) e “Psicanálise em Humanês: 16 Conceitos Psicanalíticos Cruciais Explicados de Maneira Fácil, Clara e Didática” (Ebook, 2020).
As opiniões emitidas nos artigos assinados são de inteira responsabilidade de seus autores por não representarem necessariamente a opinião do jornal.
Comments 1
Não creio que seja apenas isso
a causa desse sentimento tão cruel . É algo muito mais profundo. Creio que acontece ainda na gestação dessa criança. Não sou psicanalista, sou um vítima desse sentimento que nos impede de realizar nossos projetos, de concluir tudo a que dedicamos e as vezes até de querer entender nossos sentimentos por nós paralisar diante de tanto medo. Às vezes nos leva a uma situação de agressividade contra a pessoa que nos leva a esse extremo