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Você não tem o direito de ser feliz

Dr. Lucas Nápoli (*)

É isso mesmo, caro leitor. Você não leu errado. Eu realmente coloquei no título deste artigo que você não tem o direito de ser feliz. É bem provável que você tenha se sentido incomodado com essa frase porque ela vai na contramão de tudo o que você tem ouvido por aí nos últimos anos. No entanto, pretendo demonstrar que a ideia de que a felicidade é um direito é extremamente perigosa tanto para você individualmente quanto para a própria sociedade como um todo.

Primeiramente vamos entender como foi que a humanidade chegou a essa ideia, ou seja, como foi que nós passamos a acreditar que todo o mundo tem direito à felicidade. Se você estudar o que disseram os filósofos e pensadores da Antiguidade sobre a vida feliz, facilmente chegará à conclusão de que naquela época a felicidade era pensada como uma conquista, ou seja, uma meta que precisaria ser alcançada mediante esforço e sacrifícios. Tal conquista seria acessível a qualquer pessoa desde que ela se dispusesse a seguir o caminho nada confortável da virtude. Perceba, portanto, que se não se entendia nessa época a felicidade como um estado de espírito a que todos têm direito. Para os antigos, só alcançaria a felicidade quem se dispusesse a pagar o preço por ela.

Quando adentramos na Modernidade, ou seja, o período histórico que se inicia ali por volta do século XV, as coisas mudam de figura. A ideia de que existiria um caminho virtuoso que conduz à vida feliz dá lugar à crença de que a felicidade será o resultado de um amplo processo de transformação da natureza e da sociedade. É nesse contexto que surgem as utopias – sociedade idealizadas nas quais todos seriam plenamente felizes o tempo todo. Os obstáculos para a concretização do ideal utópico seriam a natureza e a tradição. A primeira deveria ser transformada e a segunda deveria ser demolida. Quando isso acontecesse, teríamos uma sociedade perfeita, na qual a felicidade seria uma realidade para todas as pessoas.

Apesar de esse sonho moderno ter saído de moda, alguns de seus efeitos colaterais se desdobraram ao longo dos anos até chegarem aos nossos dias. A ideia moderna de que a felicidade seria o estado no qual todos viveríamos se o mundo fosse “corrigido” está na origem da famosa frase “Você merece ser feliz”, dita a torto e a direito nas últimas décadas. O raciocínio aqui é o seguinte: todos nós nasceríamos com o direito inalienável à felicidade e, se não exercemos esse direito, não é porque não fizemos por merecer, mas porque o “mundo imperfeito” nos impede de fazê-lo.

Não sei se você consegue perceber, mas essa ideia de que as pessoas merecem ser felizes independentemente do que fizerem é perigosíssima! Quando se desvincula a felicidade da virtude, as consequências podem ser extremamente desastrosas. Com efeito, se todos têm direito à felicidade, um estuprador teria direito de abusar sexualmente de mulheres ao alegar que isso o faz feliz? Um traficante de drogas poderia legitimar seus crimes dizendo que está simplesmente exercendo seu direito à felicidade? Qualquer pessoa em sã consciência responderia essas duas perguntas com um veemente “NÃO!”. Logo, a ideia de que todos têm direito à felicidade é socialmente insustentável.

Além disso, acreditar que você tem direito a ser feliz o coloca numa posição bastante vulnerável, pois todo direito implica na existência de uma obrigação correlata de outra pessoa. Por exemplo, no Brasil, de acordo com a Constituição de 1988, todos os cidadãos têm direito a cuidados de saúde. Ora, para que esse direito possa ser efetivamente exercido, é preciso que o estado brasileiro cumpra sua obrigação de oferecer à população serviços gratuitos de cuidado à saúde. Portanto, quando eu digo que tenho certo direito, estou dizendo, ao mesmo tempo, que alguém tem um dever para comigo. Nesse sentido, se a felicidade é um direito, naturalmente deverá existir alguém (ou alguma instituição) que terá a obrigação de… me fazer feliz.

É por isso que pessoas que acreditam firmemente que têm o direito de serem felizes tornam-se ressentidas. Inconscientemente elas esperam que alguém lhes proporcione as condições para que possam usufruir da felicidade, ou seja, ao invés de buscarem a felicidade esforçando-se para conquistá-la, tais pessoas ficam passivamente esperando que alguém lhes faça felizes. Como essa expectativa inevitavelmente acaba sendo frustrada, esses indivíduos tornam-se exímios praticantes da arte da reclamação. Eles se acomodam na posição de vítimas sociais e atribuem a culpa por sua infelicidade à sociedade, ao governo, ao sistema econômico, aos astros etc.

Entendeu por que a felicidade não pode ser vista como direito? Em relação ao tema da vida feliz, deveríamos nos voltar à sabedoria dos antigos que encaravam a felicidade como o fruto de uma vida virtuosa. E o que é uma vida virtuosa? Trata-se de uma maneira de viver que não busca fugir da dor e do sofrimento, mas entende tais experiências como verdadeiros motores do crescimento. Quem acredita que a felicidade é um direito fica à espera de que lhe concedam os meios necessários para exercê-lo. Mas quem percebe a felicidade como o ponto final de um árduo percurso, levanta-se, coloca os pés no caminho certo e anda.


Dr. Lucas Nápoli – Psicólogo/Psicanalista; Doutor em Psicologia Clínica (PUC-RJ); Mestre em Saúde Coletiva (UFRJ); Psicólogo clínico em consultório particular;  Psicólogo da UFJF-GV; Professor e Coordenador do Curso de Psicologia da Faculdade Pitágoras GV e autor do livro “A Doença como Manifestação da Vida” (Appris, 2013).

As opiniões emitidas nos artigos assinados são de inteira responsabilidade de seus autores por não representarem necessariamente a opinião do jornal.

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