Se você é um apreciador assíduo dos memes mais atuais na internet, você deve ter notado em algumas esferas a temática recorrente da batalha Godzilla vs. King Kong.
Isso se dá porque dia 25/03 saiu o novo filme do que está sendo chamado o “Monsterverse”: “Godzilla vs. Kong”. Esta é a segunda vez que esses dois gigantes (o trocadilho não é intencional) vão se enfrentar, sendo que a primeira foi em 1962 no filme japonês “Kingu Kongu tai Gojira” (que se traduz literalmente como “King Kong vs. Godzilla”, como você deve ter deduzido).
Sim, eu não sou uma daquelas pessoas que fingem estar acima de apreciar um blockbuster, mas, no momento em que escrevo, ainda não vi o filme.
Mas vou ver.
Vou ver por alguma expectativa especial que tenha com esse filme? Não. Na verdade, tenho poucas esperanças de que esse filme seja bom. Digo isso baseado nos outros filmes desse universo e nos trailers que vi. Os outros filmes deixam muito a desejar, perdendo muito tempo com os humanos (que raramente, para não dizer nunca, tem uma história que valha a pena) e pouco com os monstros (e sejamos francos, qualquer um que foi ver esse filme quer ver os monstros). E, segundo os trailers, o filme vai ser focado no Kong, um personagem que acho sofrivelmente desinteressante. Sem falar que o próprio conceito de Kong (que é só um gorila gigante, mas ainda menor que o Godzilla) ter alguma chance contra Godzilla (o Rei dos Monstros, titã nuclear que venceu o King Ghidorah, um dragão alienígena gigante atômico de três cabeças) é altamente importável…
Mas eu divago.
O ponto todo aqui é: por que eu vou ver “Godzilla vs. Kong” (principalmente achando que o filme vai ser ruim)? Pelo simples fato de que (apesar de não ter nenhum interesse especial em King Kong), sou um fã de Godzilla (ou como é chamado no original, Gojira). Sim, sim, eu sei: é uma preferência considerada estranha. As pessoas pensam em Godzilla só como o enorme reptil com bafo atômico. E em vários filmes esse é realmente o caso. Mas as pessoas tendem a esquecer que Gojira é uma franquia de 67 anos. Sendo assim, a mais antiga franquia de filmes continuamente na ativa.
O que sugere duas a coisas.
A primeira é que em tanto tempo e tantos filmes (são 36 títulos levando em conta produções japonesas e americanas; e isso só os que o “Rei dos Monstros” aparece, sem contar os filmes solos de outros kaijus, como Mothra ou Rodan) é de se imaginar que a franquia tenha uma grande variedade de temas e estéticas. A segunda é que alguma coisa certa eles devem estar fazendo; afinal, nada dura tanto tempo e se torna tão intrínseco à cultura popular sem ter conseguido algum mérito considerável.
É obvio que eu não vou entrar em uma de recomendar toda franquia. Como já estabelecemos, Gojira (em suas várias encarnações) não é algo que agrade a todo paladar. Algumas pessoas têm dificuldade de lidar com um filme baseado em uma cultura tão diferente da nossa, como a japonesa; outros não conseguem ver para além dos efeitos especiais datados (sem contar a tradição japonesa de usar atores com roupas especiais para fazerem os monstros, ao contrário da computação gráfica com que ficamos mais acostumados nas últimas décadas)… Os motivos são vários para as pessoas não gostarem de Gojira.
E são validados.
Até mesmo o argumento (verdadeiro) de que alguns filmes da franquia são bem ruins. Eu desgosto especialmente do filme de 1969 chamado “Gojira-Minira-Gabara: Ōru Kaijū Daishingeki” (que normalmente é traduzido em português como “Monstrolândia” e é fácil perceber que um título não tem nenhuma correlação com o outro) e da produção americana de 1998, chamada apenas “Godzilla”.
Mas, apesar dos ocasionais deslizes de qualidade, eu ainda gosto muito de Gojira. E, apesar de não recomendar todos os filmes, tem dois em especial que eu acho indicações importantes. Acho que as pessoas deveriam ver nem que fosse para entender por que esse “lagarto radioativo” se tornou tão importante na cultura japonesa e “cultura pop” do mundo.
Essa é uma questão interessante: afinal, o que faz Gojira ser tão importante? O que faz dele o “Rei dos Monstros”? Ele nem foi o primeiro monstro gigante, levando em conta que (só por exemplo) o próprio King Kong, cujo primeiro filme é de 1933, surgiu 21 anos antes de Gojira.
Para respondermos isso, temos de voltar ao primeiro filme da franquia. Intitulado apenas “Gojira” (e em português ficamos com a forma americanizada do título: “Godzilla”), o filme saiu em 1954 e trazia o personagem-título como antagonista do filme. Na história, Gojira é um ser ancestral que foi acordado pelos testes nucleares realizados pelos Estados Unidos no Oceano Pacifico.
O filme original tem um tom muito mais sério e sombrio do que a maioria dos outros da franquia. E Gojira é apresentado como uma clara analogia para os terrores nucleares que assombravam o Japão; é importante lembrar que, além dos constantes testes nucleares norte-americanos no Oceano Pacifico, em 1954, a lembrança dos ataques nucleares feitos pelos Estados Unidos nas cidades de Hiroshima e Nagasaki ainda era uma ferida muito recente entre o povo japonês. E, mesmo limitado pela tecnologia da década de 50, o filme não foge de mostrar a dor, terror e tristeza causados pelo ataque de Gojira (e de traçar o paralelo nuclear correspondente). Sem dar muito spoiler (de um filme de 67 anos, mas ainda sim…), o filme termina com um aviso de que se os humanos não mudarem seu comportamento, outros monstros como aquele serão inevitáveis.
Eu sei que para alguns é difícil ver filmes antigos, em preto e branco, com efeitos especiais ultrapassados. Mas eu realmente acredito que se você conseguir olhar para além desses detalhes técnicos, vai descobrir que o Gojira original é uma verdadeira obra de arte. Tanto que lançou essa franquia que se mantêm viva até hoje.
E a prova de que o espírito do filme original de Gojira ainda está vivo é o último filme live-action japonês, que saiu na franquia: “Shin Gojira” (aqui no Brasil chamado de “Shin Godzilla”) de 2016.
Apesar do tom atualizado, os temas desse filme são bem similares aos do original. Mas no lugar dos bombardeios atômicos de Hiroshima e Nagasaki, “Shin Godjira” se inspirou no desastre nuclear de Fukushima Daiichi e no terremoto e tsunami de Tōhoku, em 2011. Um paralelo que (pelo menos a mim como espectador) também pareceu inevitável é o dos efeitos desastrosos do aquecimento global.
E no filme de 2016, além do próprio Gojira (com todo um visual e conjunto de poderes diferente do que estamos acostumados), o principal vilão é a burocracia e a incompetência do governo frente à ameaça. Problema que eu acho que todos nós brasileiros estamos familiarizados até demais durante esta pandemia (apesar de que nosso atual monstro residente do Palácio da Alvorada é muito mais perigoso e irracional que qualquer Gojira, além de no último pouco mais de um ano ter sido responsável por muito mais mortes que o Rei dos Monstros foi em seus 67 anos de carreira). No final, os protagonistas só conseguem vencer a ameaça ao unir um time de cientistas, contar com a cooperação internacional e, mais importante, mudar o líder do equivalente ao poder executivo.
Assim como o “Gojira” de 1954 é uma obra de arte mostrando o espírito de seu local e época de criação, acredito que “Shin Gojira” faz o mesmo pelo seu próprio momento.
E acredito que a lição de ambos os filmes se aplica a nosso próprio momento: uma mudança de paradigma no nosso modo de interação com o mundo é algo imperativo e urgente. Se não aprendermos nada com a atual crise, se só seguirmos tratando o mundo como viemos fazendo, se nada mudar, o surgimento de outros desastres e monstros é algo inevitável.
(*) Nascido em Governador Valadares e atualmente residente em Belo Horizonte. Sua formação acadêmica se traduz numa ampla experiência no setor cultural. É escritor, crítico e comentarista cinematográfico e literário.
As opiniões emitidas nos artigos assinados são de inteira responsabilidade de
seus autores por não representarem necessariamente a opinião do jornal