A partir do último fim de semana, todos os clubes e baladas da França voltaram a fechar suas portas por ao menos um mês para conter mais um avanço da covid-19.
A ordem foi dada pelo primeiro-ministro francês, Jean Castex, em anúncio que ocorreu pouco tempo após o encerramento do Transmusicales de Rennes, um dos maiores festivais de música independente do mundo. A edição 2021 do evento fechou um ano que mesclou volta aos palcos e incertezas para a cultura na Europa.
O Trans, como é apelidado, tem tradição de ser a vitrine das novas promessas na música. Em mais de 40 edições, o festival se tornou parada obrigatória para artistas que querem estourar na Europa –e no mundo.
Já passaram pela pequena cidade de Rennes, ainda sem os holofotes da imprensa global, bandas como Nirvana, Portishead e Jamiroquai e nomes hoje clássicos da música eletrônica, caso de Prodigy, Daft Punk e Justice.
O rock e o eletrônico são os gêneros por vocação do evento. A mais recente edição abriu espaço para o power trio malgache LohArano, o hardcore iconoclasta do duo britânico Bob Vylan e o pós-punk repaginado dos franceses do Gwendoline –queridinhos do público.
Nas picapes, Vinícius Honório representou o Brasil com techno de alta velocidade e a francesa Zazu levou funk dos bailes de rua de São Paulo (o chamado mandelão) para as pistas.
Músicas que fogem aos moldes eurocêntricos também tiveram lugar no festival. O destaque vai para a quase big band Star Feminine, grupo formado por adolescentes do Benin que aprenderam música graças a um projeto local. No palco, as jovens revitalizam a tradição oeste africana de rumbas e soukous popularizada por nomes como Manu Dibango. Artista que canta em língua cigana, povo alvo de preconceitos vários na Europa, Zinda Reinhardt é outra que marcou o Trans 2021.
“O objetivo do Trans é mostrar artistas que ninguém conhece, então podemos fazer muitas coisas bizarras”, diz Jean Louis Brossard, cofundador do festival. “Artistas como Beck e Bjork tocaram aqui e explodiram logo depois.”
Som de popularidade inconteste na França, o rap também vem ganhando espaço na vitrine do Transmusicales. O principal nome do hip hop a se apresentar no festival foi Ziak –artista que vem subindo postos no disputado ranking do rap francês.
O rapper segue a linha do drill, subgênero característico por rimas abrasivas, produções densas e estética obscura. Sobre o palco, Ziak rimou seus sucessos sem nunca tirar o lenço que cobre o rosto. Na plateia, muitos estavam de máscara anti-Covid, adereço comum embora não fosse obrigatório.
“Acredito que precisamos voltar a fazer shows, mesmo com máscaras”, diz Brossard, agitador cultural de peso no cenário francês. “É difícil saber o que vai acontecer nos próximos meses. Agora tem a variante ômicron. E depois? A vida sem música, sem cultura, não é mais a vida.”
Festivais desse tipo são importantes fontes de renda para cidades europeias de menor porte ou sem tradição para a vida noturna. Para fazer frente à concentração cultural de capitais como Paris e Berlim, municípios como Rennes investem pesado em eventos que atraiam capital –financeiro, a princípio, mas também social a longo prazo.
A persistência da pandemia da Covid-19 foi um banho de água fria para a maioria dos programadores e produtores de festivais do continente, que esperavam ter retomado as atividades no verão do hemisfério norte.
O britânico Glastonbury declarou logo no começo do ano que não teria edição em 2021 — assim como em 2020. A ausência do maior evento de música da Europa afugentou outras marcas de peso, como os catalães Primavera e Sónar.
O efeito dominó que se estendeu afetou drasticamente festivais menores. Dentro do setor da cultura, uma das maiores vítimas econômicas da pandemia, eventos desse tipo são a linha de frente em termos de público. Resultado: foram os primeiros a serem cancelados e serão os últimos a voltar à ativa.
Um estudo realizado pelas universidades de Montpellier e Paris Nanterre, da França, mostrou que somente naquele país o prejuízo estimado pela ausência de festivais foi da ordem de 2 bilhões de euros –isso apenas em 2020.
O prejuízo começou a ser mitigado com o avanço da campanha de vacinação no fim do primeiro semestre de 2021. Na França, cuja capital é apinhada de teatros, cinemas de rua e casas de espetáculos, o governo apelou justamente à cultura para aumentar a adesão à vacina.
Em agosto, o presidente francês Emmanuel Macron declarou obrigatória a apresentação do “passaporte Covid” (atestado de esquema vacinal completo) para entrada em equipamentos culturais e mesmo bares. A medida permitiu que baladas e grandes eventos reabrissem as portas pouco a pouco.
Franquia de peso no mundo da música eletrônica, o festival Nuits Sonores, em Lyon, teve lugar quase com lotação completa. Mas o clima de volta à normalidade durou até meados de dezembro.
O Trans, que ocorre já às vésperas do inverno, foi o último a surfar a onda da pandemia quase parando. A ameaça da variante ômicron e o novo aumento do número de casos de Covid-19 botaram a música na Europa no pause outra vez.
No vácuo deixado pelos novos confinamentos da cultura no continente, o Brasil volta a atrair os olhos de artistas internacionais. Festivais de renome como as versões nacionais do holandês DGTL, do alemão Time Warp e o recém-chegado Gop Tun — com lineup poderoso — anunciaram recentemente que devem ocorrer normalmente no primeiro semestre de 2022. Resta acompanhar se as datas serão mantidas em meio às incertezas da pandemia. FELIPE MAIA/FOLHAPRESS